Na última semana celebramos os 100 anos de Astor Piazzolla, um dos grandes nomes da música mundial. O artista argentino, dentro do domínio de seu bandoneon, deu uma nova roupagem ao tango. Com mais velocidade e destreza, o gênero começou a ganhar uma força em sua dramaticidade. Cada nota parece refletir na imaginação do ouvinte.
“O tango é a própria Argentina", isso é uma verdade indiscutível, mas poucos sabem que o ritmo chegou no Brasil antes do que na pátria de Maradona. No século XIX, já tocava em solo brasileiro, aliás, o pesquisador Jairo Severiano vê o tango como uma mistura da Polca e dos Lundus que se ouviam no país.
Poderia acrescentar ainda que o tango, esse brasileiro, surge na mesma linhagem do maxixe, e até do choro. Mesmo assim, não se pode remeter esse estilo ao que viria a se popularizar entre os argentinos. Temos de admitir, esses souberam recriar este gênero musical.
Décadas depois de ganhar nova nacionalidade, o tango segue querido do Brasil. Talvez pelo seu olhar triste, porém valente, foi inúmeras vezes gravado por cantores da nossa música popular, e teve até que ousou compor o tão falado tango.
Compositores brasileiros no drama argentino
Um dos grandes nomes do tango foi Carlos Gardel que, mesmo nascido no Uruguai, adotou a Argentina como casa e fez sua carreira. Foi em homenagem ao cantor que surgiu uma das primeiras composições da nossa música popular na roupagem de tango argentino. “Tango pra Tereza”, por exemplo, música de Jair Amorim com o cearense de Orós, Evaldo Gouveia.
A canção faz referência não só melodicamente, mas na letra ao remeter sucessos do cantor a um passado bonito, mas repleto de tragédias, amores e separações.
Essa é a mesma teoria, por exemplo, da “Vermelho 27”, que fez sucesso na voz do centenário Nelson Gonçalves, incorporando um jogador viciado e perdendo tudo na roleta de cassino.O próprio Metralha, como Nelson era chamado no meio artístico, gravou também “Carlos Gardel”, música em homenagem ao compositor no qual o intérprete afirma “Enquanto houver um tango triste,/ Um otário, um cabaré e uma guitarra,/ tu viverás também” perpetuando o legado do uruguaio na eternidade.
Ainda no sotaque castelhano, ícones da nossa música deram voz a tangos inesquecíveis. Caetano Veloso regravou “Cuesta Abajo”, em um canto suave e moderno. “El día que me quieras” é uma das músicas internacionais mais gravadas por artistas como Roberto Carlos, Agnaldo Timóteo, Leny Andrade, Roberta Miranda e Bibi Ferreira.
Versões em português de “Yira...Yira…” e “El panuelito” se tornaram populares no Brasil nas décadas de 1960 e 1970 na voz do cantor Cauby Peixoto, a última canção também chegou a ser gravada (e fazer sucesso) nas vozes de Núbia Lafayette e Dalva de Oliveira.
Chico Buarque, talvez o maior gênio da nossa música, fez alguns tangos dentre eles “Tango do Covil” e “Tango de Nancy”, ambos fiéis à proposta argentina. Na voz dos mais novos, Simone Mazzer deu toda sua swing e fúria, para “Tango do Mal”, música de Luciano Salvador Bahia que ganhou o humor de Eduardo Dussek. O tango também é nosso, e teve muito cearense que também o fez.
O cearense faz de tudo, inclusive tango !
Conversando com o brilhante compositor Rodger Rogério depois de uma entrevista, ele me contou certa história da música “Retrato Marrom”. A letra foi feita no início da década de 1970, pelo igualmente genial Fausto Nilo. Os versos falam sobre a boemia fortalezense do período castrada pela repressão. Os bares deveriam ser escuros, com poucos amigos, e as risadas e liberdades eram somente memórias.
A narrativa da canção teve inspiração também no Estoril, bar frequentado pela juventude na época. Até as aves que estampavam as toalhas de mesa do velho palacete se fizeram presentes na obra belíssima do arquiteto.
Toda aquela inspiração precisava de ritmo, e Fausto procurou o amigo Rodger para musicalizar. O artista ficou tempos ao violão mas nada saia. Depois de alguns vinhos e uma noite regada ao som do já mencionado Astor Piazzolla, o compositor deu a letra toda a dramaticidade de um tango argentino, só que “made in Ceará”.
A surpresa foi grande quando assisti também Rodger Rogério cantando, anos depois, com Edinho Vilas Boas a música “Noite de Tango”, uma composição de dois cearenses, Nonato Luiz e Eason Nascimento, letra que recebe duas versões, uma em português e outra em castelhano.
Realmente cearense faz de tudo, até tango. Aliás, o gênero repleto de intensidade se faz presente em uma das mais conhecidas canções do cantor cearense Belchior, a belíssima “A Palo Seco”, onde o compositor afirma que um “tango argentino lhe vai bem melhor que um blues”. Ele estaria certo !