“Eu quero cantar até o fim”, essa é a frase que encerra a música “A Mulher do Fim do Mundo” lançada pela magnífica Elza Soares em 2015, no álbum que viria a ter o nome da faixa, e que marcou a vida da veterana, já que este foi o seu primeiro de músicas inéditas.
Neste trabalho, Elza se mostra incansável, mais feroz que suas dores e leva na garganta a luta de um povo, no qual ela pode dizer que faz parte, pois conhece e compactua com as lágrimas de inúmeros brasileiros. Depois de 2015, a carioca passou a ser redescoberta por um público, inclusive jovem, e brilhou em CDs que trariam uma nova cantora, longe dos sambas, e perto das ideologias.
Na noite do dia 26 de Fevereiro, em suas redes sociais ela anunciou que 2021 seria um ano de “projetos incríveis”. Não seria soberba da artista, dias depois lança nas plataformas digitais o single “Nós”, pela gravadora Deck, música de Tião Carvalho, mas que veio a ganhar destaque na voz da inesquecível Cássia Eller, ainda em 1994.
Elza sempre mostra sua magnitude, e com o arranjo de cordas de Felipe Pacheco Ventura (também no violão e violino), acompanhamento da guitarra de Kiko Dinucci e a excelente produção Rafael Ramos, a cantora leva toda emoção de um clássico que ganha roupagem nova, sem perder a dramaticidade do samba quase flamenco.
A faixa deve ser o primeiro registro fonográfico da cantora, que segue lançando singles com grande frequência. Só em 2020 ela grava “A Coisa Tá Preta” em parceria com a Mc Rebecca, “Comida” com a banda Titãs, “Divino Maravilhoso” e “Negão Negra” ambos em dupla com Flávio Renegado, além dos eternos “Carinhoso” e “Juízo Final”. Elza resiste ao tempo, se reinventa sem esquecer sua essência calejada pela vida.
Uma sobrevivente
A luta que é a vida desta senhora chamada Elza Gomes da Conceição vai antes do seu nascimento, isso porque ela nasce no Brasil, país de diversidade tão bonita, porém de preconceito e segregação desesperadora. A artista nasceu no subúrbio carioca, foi uma das muitas vítimas da fome e dos contrastes sociais.
Em um mundo brutalmente machista, ainda na década de 1940, Elza, por imposição do pai, se casa aos doze anos, com um homem que meses antes havia tentado lhe abusar sexualmente. Logo dá à luz ao seu primeiro filho. Aos quinze, ficaria grávida novamente, porém este menino morreria de inanição ainda pequeno.
Aquela mulher fez da sua vida uma eterna luta. Mãe, esposa, também muito cedo foi trabalhar para garantir o sustento da casa, já que o marido era tuberculoso e não podia fazer esforços. Aliás, foi pela doença que ele iria morrer logo depois, deixando Elza quando ela só tinha 21 anos. Elza chegou a furtar por desespero, diante do desejo de colocar o pão na boca dos filhos.
Elza Soares, sobrenome que herdara do marido, foi trabalhar como doméstica nos lares, e em um destes seus patrões sequestraram sua filha Dilma, ainda bebê, no qual a cantora passou mais de trinta anos para reencontrar. Essas foram os que tiveram nome, pois muitas das crianças morreram no momento do parto. Ela teve oito filhos no total.
Foi para comprar um remédio para um de seus filhos que aquela jovem franzina (pesava pouco mais de trinta quilos) enfrentou a vergonha e foi cantar no programa de calouros, ainda na grande “Era do Rádio”. Ao subir no auditório do programa, mal vestida, pobre e negra, o público riu, inclusive o próprio Ary Barroso, apresentador da atração, que perguntou debochando “de que planeta você veio?" e ela prontamente respondeu “do planeta fome”.
Aquele constrangimento viria a ser o início da sua carreira artística brilhante. Após cantar “Lama”, Elza seria abraçada pelo compositor que emocionado falou “aqui nasce uma Estrela”.
Depois disso, muitas foram as alegrias, mas as tristezas seguiram a vida da carioca. A mais conhecida delas foi o casamento com o jogador da seleção brasileira Mané Garrincha. O esportista era alcoólatra, batia na esposa chegando a quebrar seus dentes em um muro. Devido ao vício, Garrincha perdeu tudo, e após sua morte Elza, injustamente, foi culpada pela má situação financeira do astro do futebol.
Mais uma vez, seu lado mãe iria sofrer a maior dor que existe: seu filho Garrinchinha, fruto da seleção com Mané, morreu em um trágico acidente de carro. Tal dor voltaria a se repetir no ano de 2015 quando a artista perderia seu filho Gilson.
“Levanta, sacode a poeira e dá volta por cima”, Elza venceu seus traumas e medos, fez do trabalho sua fortaleza. É uma sobrevivente, e agora devidamente vacinada da Covid-19, segue fazendo da sua voz a de seus irmãos de pátria. Os que vivem os mesmos entraves e dissabores que esta eterna musa ultrapassou.
“Você vai se arrepender de levantar a mão pra mim”
O lançamento do single “Nós” também veio em março para celebrar o dia internacional da mulher. A causa feminina sempre foi um dos olhares atentos da cantora que em 2015, no álbum “A Mulher do Fim do Mundo” lança a também inédita “Maria de Vila Matilde”, letra que traz como referência a “Lei Maria da Penha”, e propaga o número “180”, do disque denúncia.
“A carne mais barata do mercado é a carne negra”, é outro verso que segue ecoando na sua voz, agora na luta contra o racismo, mal que a artista sofre desde a primeira infância. Elza é luta, e faz espalhar o grito de desespero de tantas Marias e Clarisses no solo deste Brasil.
Longe de querer fazer resenha ou crítica de seu novo trabalho, mas mencionar “Nós” neste espaço é discorrer sobre o suor sagrado de uma das figuras mais brasileiras da nossa arte popular. Vida longa a Elza Soares, sobrevivente da fome, do machismo, do preconceito, da pobreza, da violência, da política...E agora, imunizada da Covid-19.
Nesses tempos que o mundo parece traçar seu fim, Elza é fênix e faz recomeçar a cada dia. Idade ? Esse é um detalhe que a cantora nem gosta de mencionar, pois seu espírito permanece jovem, diante um público que lhe redescobriu e exalta. Deixem ela cantar até o fim !