Uma ponte afetiva entre Portugal e o Nordeste mais profundo

Há algo nas deliciosas tripas à moda do Porto que me remete, de modo inevitável, aos sabores da melhor panelada cearense. Há algo na tradicional “jardineira”, trivial cozido português de carne com legumes, que me devolve os cheiros da mesa de infância. Há algo na fala ríspida dos velhos lusitanos que me recorda o jeitão desabusado de meu povo.

Há algo no dizer “barrer” por “varrer”; “bassoura” por “vassoura”, “berruga” por “verruga”, enfim, nesta troca tão portuguesa do “v” pelo “b”, que evoca a eufonia do linguajar sertanejo. Há algo em falar “encarnado” em vez de “vermelho”, “ordenado” no lugar de “salário”, “avariado” ao invés de “quebrado”, registros tão cotidianos ao léxico deste lado europeu do Atlântico, que me lembra os arcaísmos telúricos de minha avó Isaura.

No sertão, estar acima de algo é estar em riba de alguma coisa. Aqui, o Ribadouro é uma belíssima região situada, é claro, ao norte do rio Douro.

Há algo profundamente próximo entre o São João português — a grande festa nacional — e os folguedos juninos do interior do Nordeste, com seus balões, bandeirinhas coloridas e fogos de artifício.

Há algo dos “caretos” de Trás-os-Montes nas máscaras dos “caretas” de Barbalha, dos “gigantones” de Viana do Castelo nos bonecões de Olinda. Há uma herança notória dos casarões coloniais do Porto e Lisboa, incluindo portas, janelas, azulejos e balcões gradeados, nos sobradões do Icó e Aracati.

Há algo peculiar às praças de cá, com seus coretos no centro e igrejas ao derredor, que me transportam aos passeios por cidades da meninice, Caucaia ou Massapê. Há algo neste país litorâneo, espremido entre o mar e a montanha, que me leva de volta a paisagens e cenários do lugar onde nasci.

Há algo profundamente familiar nestas músicas sefarditas e mouras, que me entram pelos ouvidos e pela alma, despertando paralelos e identificações. Há algo de íntimo e reconhecível na morenice deste povo peninsular, fruto de caldeamentos milenares, misturas, amálgamas, fusões.

Intrigante procurar entender e decifrar tais trânsitos de sentido, investigar o fio e os rastros de memórias ancestrais. A paixão por determinados diminutivos, principalmente o “bocadinho”, dito e repetido por cá a toda hora. O uso da segunda pessoa do singular, o “tu”, utilizado aí de forma insurgente, aqui perfeitamente conjugado.

Até o nublado e a chuva que tanto cai aqui me lembra da ausência de nuvens daí. O Atlântico não é assim tão vasto e largo. Impossível sentir-se totalmente estrangeiro em Portugal. Não é só a língua. Nos ossos e sangue, trazemos o mesmo código, o mesmo sentimento de vinda e partida. Quando corremos o mundo, acabamos por chegar mais perto de nós mesmos.

*Esse texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor.