Quando nasce uma cidade? Como determinar o momento exato no qual um pedaço de chão contrariou a natureza, devorando-a, para então se tornar uma urbe, com ruas e gentes, espacialidades e identidades próprias? Como definir, afinal, a data de fundação de um lugar?
Perguntando de outro modo: quando é o aniversário de uma cidade? Quando ela faz anos, completa ciclos de vida, é-lhe concedido o direito de comemorar o natalício, marco simbólico a partir do qual rememoraram-se passados, projetam-se futuros?
Diz-se que hoje, 13 de abril, é aniversário de Fortaleza — e que ela estaria completando 295 anos. A data, claro, é arbitrária, estabelecida por lei. Sua oficialização, recentíssima. Remonta apenas a 1994, por meio de projeto aprovado na Câmara Municipal, sancionado pelo então prefeito Antônio Cambraia.
A demarcar o suposto marco zero, cita-se a elevação de povoado à vila, em 13 de abril de 1726, após grupos de indígenas — em revide ao grande massacre autorizado pela Corte portuguesa — atacarem a vila de Aquiraz, primeira capital. Por precaução e desespero, a sede da capitania passou-se para debaixo das armas do Forte de Nossa Senhora de Assunção.
A cada ano, reedita-se a mesma discussão bizantina: não deveria ser levada em conta, na verdade, a fundação de baluarte bem anterior, embora efêmero, a paliçada de São Tiago, erguida em 1604, por Pero Coelho, na Barra do Ceará?
Ou então por que não celebrar como marco inicial os feitos do quase mítico Martim Soares Moreno, capitão-mor da capitania do Siará que mandou erguer um forte de madeira, no mesmo local, em honra a São Sebastião, em 1611?
Ou, ainda, em alternativa, por que não atribuir o epíteto de verdadeiro fundador da cidade ao neerlandês Matias Beck, militar a serviço da Companhia das Índias Ocidentais, construtor do forte de Schoonenborch, em 1649, às margens do Pajeú, riacho que mais tarde serviu de berço ao primeiro núcleo populacional propriamente dito?
São perguntas recorrentes, recursivas, renitentes. Mas, também, esvaziadas de sentido. Contendas historiográficas do gênero esquecem que nenhuma cidade se funda por graça e mercê de uma decisão administrativa, nem é construída pelo gesto unipessoal de um presumido herói. Para além dos decretos régios e mitos de origem, uma cidade é invenção coletiva e cotidiana, obra eternamente aberta e inacabada, sem início claro e definido.
Fortaleza é este emaranhado histórico de tensões, construída e desconstruída a cada dia, no embate permanente entre moradores, forças do mercado e atuação do Estado — numa relação quase sempre desequilibrada entre homem e natureza, progresso e memória, civilização e barbárie.
Celebremos este 13 de abril. Mas talvez haja mais a pensar do que a comemorar. Menos a festejar do que a refletir. De todo modo, parabéns, Fortaleza. Muitas felicidades; muitos anos de vida. São os votos mais sinceros deste filho ausente, que sente saudades de teus ares, mas também sofre, mesmo à distância, por tuas tantas desigualdades, injustiças e misérias.
*Esse texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor.