Tese de legítima defesa da honra usada para crime de feminicídio ainda precisa ser julgada; entenda

Em parecer, a PGR defendeu a inconstitucionalidade desse recurso para justificar a absolvição de condenados por feminicídio

Estamos em 2023. A lembrança de que já completamos quase um quarto do Século XXI é para ressaltar que, apesar de tantos avanços, ainda precisamos lidar com questões que há muito deveriam estar superadas. 

Uma delas é a tese da "legítima defesa da honra", utilizada em casos de feminicídio ou agressões contra mulher para justificar o comportamento do acusado. O argumento era de que o assassinato ou a agressão eram aceitáveis quando a vítima tivesse cometido adultério, pois essa conduta supostamente feriria a honra do agressor.

A tese foi considerada inconstitucional pelo plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) em março de 2021. Segundo a unanimidade dos ministros, a "legítima defesa da honra" contraria os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e da proteção à vida e da igualdade de gênero.

A decisão, tomada em sessão virtual, referendou liminar deferida pelo ministro Dias Toffoli na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 779.

Assim, a tese não pode ser usada em nenhuma fase do processo penal nem durante o julgamento perante o Tribunal do Júri, sob pena de nulidade. O caso, contudo, ainda precisa passar por julgamento definitivo, mas ainda não há previsão de data.

PGR defende fim da tese em casos de feminicídio

Em parecer enviado na última quinta-feira (11), o procurador-geral da República, Augusto Aras, defendeu no Supremo Tribunal Federal (STF) a inconstitucionalidade do uso da tese de legítima defesa da honra para justificar a absolvição de condenados por feminicídio.

No documento enviado ao Supremo, Aras pede que decisões judiciais que utilizaram o argumento sejam anuladas, incluindo julgamentos pelo Tribunal do Júri. Para o procurador, além de decisões judiciais, a proibição do uso da tese deve ser considerada inconstitucional também para a defesa de acusados de feminicídio e nas acusações feitas pela polícia.

Nenhuma tentativa de justificar o assassinato de mulheres, com benefício a seus algozes, haverá de ser tolerada, sob pena de afronta imediata a preceitos constitucionais da máxima relevância e desprezo a todo um regramento que nos leva à direção oposta, contribuindo-se para a perpetuação da impunidade em crimes dessa natureza e o aumento de número já alarmante de morte"
Augusto Aras
Procurador-geral da República

Lei permitia que homem com "honra lesada" por adultério agredisse a mulher

Na petição, a PGR também lembrou que a legislação brasileira possui histórico de normas que chancelaram a violência contra a mulher.

Entre 1605 e 1830, foi permitido ao homem que tivesse sua "honra lesada" por adultério agir com violência contra a mulher. Nos anos seguintes, entre 1830 e 1890, normas penais da época deixaram de permitir o assassinato, mas mantiveram o adultério como crime.

Somente no Código Penal de 1940, a absolvição de acusados que cometeram crime sob a influência de emoção ou paixão deixou de existir, lembrou o procurador.

"O avanço progressivo da legislação, na direção de ambiente de maior igualdade de gêneros e de objeção à impunidade injustificada de homens pela morte de mulheres, não foi acompanhado em igual cadência pelos costumes e valores de parte da sociedade, que naturalizou por período demasiadamente extenso a possibilidade de defesa da honra do homem, mesmo que às custas da vida da mulher", concluiu.

Ação de inconstitucionalidade quer impedir decisões que validam tese

Na ação, o Partido Democrático Trabalhista (PDT) sustenta que Tribunais de Justiça ora validam, ora anulam vereditos do Tribunal do Júri em que réus processados por feminicídio são absolvidos com base na tese. Argumenta, ainda, que a prática passa a mensagem de que é legítimo absolver réus que comprovadamente praticam feminicídio com base nesse fundamento.

Por isso, pede que a Corte interprete dispositivos do Código Penal e do Código de Processo Penal para afastar a tese jurídica da legítima defesa da honra.

Recurso argumentativo/retórico "odioso, desumano e cruel"

No entendimento da Corte, na linha do voto condutor do ministro Dias Toffoli, a infidelidade no contexto das relações amorosas se insere no âmbito ético e moral, e não há direito de agir contra a mulher com violência, de forma desproporcional, covarde e criminosa.

Segundo o relator, "legítima defesa da honra" não é, tecnicamente, legítima defesa, que é uma das causas excludentes da ilicitude previstas no Código Penal - ou seja, excluem a configuração de um crime e, consequentemente, afastam a aplicação da lei penal, tendo em vista a condição específica em que foi praticado determinado fato.

Para Dias Toffoli, trata-se de um "recurso argumentativo/retórico odioso, desumano e cruel" utilizado pelas defesas de acusados de feminicídio ou agressões para imputar às vítimas a causa de suas próprias mortes ou lesões.

Toffoli apresentou dados estatísticos, informações divulgadas pela imprensa e por órgãos governamentais nacionais e internacionais que atestam o aumento dos casos de feminicídio no Brasil nos últimos anos, como o Atlas da Violência 2020, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).

O documento aponta o crescimento de 8,3% na taxa de assassinato de mulheres dentro de casa entre 2013 e 2018. Diante de um quadro social dessa gravidade, na avaliação do ministro, o uso da tese ilegítima é um ranço que contribui para a institucionalização da desigualdade entre homens e mulheres e para a tolerância e a naturalização da violência doméstica.

Herança do Brasil colonial 

Em seu voto, o ministro Alexandre de Moraes destacou que o argumento da legítima defesa da honra remonta ao Brasil colonial e, ao longo dos anos, fortaleceu um discurso que considera a honra masculina como bem jurídico de maior valor que a vida da mulher. Mas, segundo ele, exige-se dos Poderes da República e da sociedade que não se tolere mais "não somente o discurso discriminatório, mas a impunidade dos envolvidos em crimes tão selvagens, cruéis e desumanos".

Tolerância

O ministro Luís Roberto Barroso, por sua vez, ressaltou a necessidade de colocar freio à "lastimável e preconceituosa tese", que continua a ser alegada nos Tribunais do Júri Brasil afora.

Para a ministra Cármen Lúcia, a tese não tem amparo legal e se firmou "como forma de adequar práticas de violência e morte à tolerância vívida na sociedade aos assassinatos praticados por homens contra mulheres tidas por adúlteras ou com comportamento que fugisse ou destoasse do desejado pelo matador".

Ranços machistas

Já o ministro Luiz Fux assinalou que os números da violência doméstica e do feminicídio registrados nas estatísticas policiais comprovam que a cultura machista e misógina ainda impera no país e "coloniza as mentes de homens e mulheres, seja de modo refletido ou irrefletido, consciente ou pré-consciente".

O ministro Gilmar Mendes também considerou inadmissível a utilização da tese, "pautada por ranços machistas e patriarcais que fomentam um ciclo de violência de gênero na sociedade".

Nulidade de prova

Pela decisão da Corte, a chamada "defesa da honra" é uma tese inconstitucional e, por isso, não pode ser usada pela defesa, pela acusação, pela autoridade policial e pelo próprio juízo nas fases pré-processual ou processual. Qualquer referência a ela poderá levar à nulidade de provas ou até do julgamento perante o Tribunal do Júri.

Com informações da Agência Brasil e Assessoria de Comunicação do STF.