O povo subiu a rampa: relato de uma inesquecível posse presidencial I

Eu estava lá! Como milhares de brasileiros e brasileiras de todas as raças, de todos os credos, de todos os estados brasileiros. Fomos para testemunhar, pela terceira vez, o maior líder de origem popular de nossa história subir a rampa do Palácio do Planalto e ser empossado presidente da República Federativa do Brasil. Quem pôde ir (e outros milhares não foram por não ter condições), assistiu a uma das tomadas de posse presidencial mais carregada de simbolismo, de emoção, de significação histórica.

Por tudo o que aconteceu desde que os herdeiros da casa-grande, inconformados com a ascensão social dos descendentes das vítimas da senzala, resolveram chamar os capitães do mato, os feitores e os caçadores de recompensa, e deram um golpe, através do simulacro de impeachment sem crime de responsabilidade (como recentemente mais uma vez foi reconhecido pelo próprio Judiciário que, a época, se omitiu ou agiu de forma subserviente aos mandões de sempre) o retorno do ex-operário, nordestino, sem diploma universitário, deficiente físico, sindicalista, líder de esquerda, encarcerado por 580 dias - após a mais vergonhosa e desabrida perseguição política que já ocorreu no país, travestida de combate a corrupção, por um juiz e uma força-tarefa corrompidos e a serviço dos interesses dos senhores daqui e de alhures, com a colaboração inestimável daqueles que colocam sua pena, sua voz e sua imagem a serviço dos patrões - ao cargo mais importante da República, se encheu de significados os mais diversos.

Posse que ocorria após, mais uma vez, os senhores herdeiros da casa-grande terminarem por atirar o país nos braços do fascismo, do obscurantismo, da força bruta, da barbárie, para que a predação das riquezas do país, inaugurada pela colonização portuguesa, não fosse obstaculada (predação da natureza, da força de trabalho, das riquezas minerais, da economia nacional). Para manterem uma estrutura social marcada pela mais iníqua desigualdade social, pelos enormes privilégios de uma minúscula elite nababesca, mais uma vez não se envergonharam de entregar os destinos do país a um serviçal despreparado, bronco, ignaro e autoritário, com quem muitos deles se identificam.

Depois de mais um período de exceção, de destruição de qualquer coisa parecida com um Estado de bem-estar social - em que os ditos liberais brasileiros, que sempre conviveram bem com o chicote, o tronco, a gargalheira, as correntes e as algemas, com o trucidamento daqueles que ousam resistir e se rebelar, tudo fizeram para retirar os pobres do orçamento e para entregarem o Estado e seus ativos aos interesses privados e mesquinhos dos senhores do capital, amealhado, em sua maior parte, com o trabalho e o sangue daqueles condenados a roer osso, morar nas ruas e se tornarem pedintes e carne barata no mercado do crime e da morte -, tivemos que, novamente, como povo, como as gentes sem eira nem beira, os silvas e conceições, reconstruir a democracia e salvar o país da barbárie armamentista, pretensamente cristã (afinal os padres e cristão legitimaram e benzeram a escravização de milhões de seres humanos, em nome da conversão e do combate ao paganismo e a heresia) e neoliberal agropop.

Desde a saída do aeroporto, em Natal, o avião, agora desertado de gente pobre, entoou o olê, olê, olê, olá, Lulá, Lulá. Na chegada em Brasília, uma verdadeira apoteose, petistas, lulistas, simplesmente cidadãos e cidadãs brasileiras, se abraçando, confraternizando, uma enorme alegria e contentamento no ar. No portão de saída verdadeiras procissões de pessoas, de todos os quadrantes do país, a cantar o hino da grande liderança nacional, o único capaz de articular a ampla aliança política que o permitiu derrotar a mais desabrida utilização da máquina pública, a chantagem do patronato, dos rentistas, a maior campanha de mentiras e desinformação já vista (os coronéis e o voto de cabresto da Primeira República ficaram no chinelo perto do capitão e seus cabos eleitorais, muitos deles com patente e distintivos verdadeiros). Lideranças políticas de esquerda chegavam a toda hora, depois de amargarem duros anos de resistência ao medo, à intimidação, ao apelo ao crime sanguinário para calar os opositores, fazendo jus a palavra do líder que aconselhou fuzilar a petralhada e matar uns 30 mil.

Numa cidade tomada pela apreensão diante de atos terroristas e de ameaças e boatos do achamento de bombas, os vencedores em 30 de outubro não se acovardaram e acorreram aos milhares enchendo as ruas de roupas, bonés, sacolas e bandeiras vermelhas. Visitando o acampamento que foi montado no Parque de Exposição da Granja do Torto, uma área vizinha de onde morará, mais uma vez, o camarada presidente, pude testemunhar a chegada de caravanas vindas, sobretudo do Norte e do Nordeste, regiões onde Lula teve consagradoras votações, pessoas de camadas populares, negras, pardas, caboclas, em sua maioria, que viajaram mais de trinta horas, de ônibus ou automóveis, e que ali se propunham a dormir em barracas e a tomar banho e comer em instalações coletivas muito bem organizadas (quem duvida da capacidade de nosso povo em se organizar, em ser solidários precisam ter essas experiências), aí iriam fazer a festa da virada de ano, na espera ansiosa pela posse do companheiro Lula.

Na Esplanada dos Ministérios gente de todo Brasil, notadamente de classe média, também já providenciavam a compra dos adereços e dos kits de sobrevivência para o outro dia, já que ao contrário daqueles que vimos no acampamento não estão acostumados com o desconforto, a levarem chuva, sol e poeira, a passarem sede e ficarem de pé durante horas (esse que vos fala reviveu sua experiência de agricultor no sertão paraibano, pois, ao contrário da previsão, Brasília ferveu com um sol abrasador e inclemente, sem rastros de muitas nuvens nos céus. Foram muitos os que passaram mal sob o calor da Praça dos Três Poderes, onde não se encontra um pé de pau para fazer uma sombra, isso diz muito dos próprios poderes, que têm dado abrigo, sombra e água fresca a poucos).

E chegou o grande dia, depois de uma festa de ano novo perto da antena de TV, onde o que mais se ouviu foi o nome de Lula e o hit de Madeirada, já ultrapassado pelos fatos, pois aquela altura, para alívio da maioria e decepção e revolta dos seguidores fora da realidade, o Jair já tinha se escafedido do país, inaugurando o Dia do Fujo, dando passagem para que o representante do partido militar fosse a TV fazer um pronunciamento que, como sempre, ficou entre a ameaça e o disfarce subliminar, tripudiando sobre um rei posto e morrendo de medo da prisão.

Logo cedo, ainda com o raiar do dia, uma fila quilométrica se formou, em busca de passar pelos detectores de metais que davam acesso a Praça dos Três Poderes. Para assistirem os eventos da posse que só começariam as 14:30, cerca de quarenta mil pessoas se propuzeram a se espremer num quadrilátero de cimento, asfalto, sol, calor e falta total de infraestrutura, já que também por motivo de segurança até a entrada de ambulantes foi limitada. Com muita gente passando mal veio o socorro do Corpo de Bombeiros, com suas mangueiras a esguichar água sobre a multidão e com suas padiolas a transportar os casos mais graves.

Como era proibido entrar com qualquer coisa de beber e comer, a fome e sede só não foram maiores do que a alegria e o entusiasmo em verem de perto Lula subir a rampa mais uma vez. Uma enorme bandeira do Brasil, resgatada do sequestro dos símbolos nacionais pelos fascistas entreguistas que se dizem patriotas, convivia com uma enorme bandeira do movimento LGBTQIA+, indiciando as mudanças que estavam em curso. O falso moralismo pretensamente cristão e familista dando lugar a um Estado laico e que defende os direitos humanos de todos os seguimentos sociais, inclusive de todos os seguimentos religiosos.

Antes da Praça dos Três Poderes, quem não conseguiu ou não quis entrar na área de segurança máxima do evento (eu que já fui a quatro outras posses nunca havia visto um esquema de segurança tão aparatoso e ostensivo) teve acesso a estrutura montada nos gramados da Esplanada dos Ministérios, que foi completamente cercada de tapumes e gradeados de metal, isolando completamente a avenida entre o Museu Nacional e o Palácio do Itamaraty, por onde o presidente faria o trajeto em carro aberto. Os acessos pelas ruas laterais e de fundos dos prédios dos Ministério foram completamente bloqueados.

Na Esplanada estavam montados os dois palcos onde ocorreram durante todo o dia a apresentação de artistas que se dispuseram a fazê-lo gratuitamente, numa programação extensa que teve início as 10 da manhã, só se encerrando as 4 horas da madrugada do dia 02 de janeiro, ele começou com um enorme cortejo formados por indígenas, movimentos sociais, entidades de classe e sindicatos, representantes de serviços públicos e várias manifestações culturais populares (bonecos gigantes, maracatu, caboclinhos, entidades carnavalescas), sendo aberto ao som dos tambores de vários grupos afro. Milhares de pessoas encontraram aí uma grande infraestrutura, com seis telões sonorizados, inúmeras barracas de comidas, das mais variadas procedências (baiana, mineira, paraense), para os mais variados gostos (até para veganos e vegetarianos), destacando-se as barracas do MST oferecendo comida feitas com os produtos da agricultura familiar, bares, mesas e cadeiras de plástico que, a medida que o dia avançava e o sol ficava mais quente foram sendo movidas para debaixo dos toldos espalhados em frente as barracas.

Houve quem usasse as mesas como guarda-sol, se encolhendo embaixo delas, houve quem fez delas grandes mesas cobertas de bandeiras e toalhas vermelhas. Havia ainda, numa área mais afastada dos palcos principais, outros pequenos palcos, onde se apresentavam artistas do Distrito Federal e do entorno, com um cardápio para todos os gostos musicais (DJs, samba, pop, rock, música sertaneja, funk, hip-hop, brega, MPB, etc). Aí calcula-se que estiveram, ao longo do dia, cerca de 310 mil pessoas. E finalmente, chegou o grande momento. Pontualmente as 14:30, Luís Inácio Lula da Silva, enfrentando todas as ameaças, não se intimidando, subiu ao Rolls Royce Presidencial, ao lado de Janja e do vice-presidente Geraldo Alckmin, numa entre muitas quebras de protocolo desta cerimônia de posse, para sinalizar o próprio slogan vitorioso nas eleições: “Vamos Juntos pelo Brasil”. Na próxima semana, leiam a continuação desse relato.

*Esse texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor.