Mito, fake news e vida na bolha: quando fracassa o princípio de realidade

O psicanalista francês Jacques Lacan (1901-1981) definia o Real como uma instância que configura e atravessa a nossa vida psíquica, que nos condiciona como sujeitos. O Real é tudo aquilo contra o qual nada podemos, o Real existe, tem um ser, independente de nossas vontades, desejos, sonhos, aspirações. O Real nos limita, nos impõe limites, nos afronta. O Real independe de nós para existir, ele se compõe de tudo aquilo que não precisa dos humanos para existir (a terra, o sol, a montanha, as marés, os terremotos, as catástrofes, os dias e as noites, o tempo, a morte). Mas ele também se compõe de tudo aquilo que na vida social não podemos ter controle, de tudo que nos acontece sem que possamos impedir.

Vivemos querendo dominar o Real, compreendê-lo, domá-lo na sua fúria, controlá-lo, submetê-lo aos nossos desejos e fantasias, às nossas ideias e visões de mundo. Buscamos fazer com que o Real se molde aos nossos caprichos, aos nossos gostos, às nossas opções ideológicas, estéticas, éticas, etc. Mas, no entanto, ele sempre nos escapa, parte dele sempre sobra, sempre resta, sem que consigamos ter dele uma imagem completa, sem que consigamos simbolizá-lo em sua totalidade. Por mais que nos esforcemos para conhecê-lo em sua inteireza, em sua substância, em sua verdade, ele sempre nos ultrapassa, nos barra, nos impede de ter o controle absoluto sobre ele.

Segundo a psicanálise, nos movemos no interior dos princípios do prazer e da realidade. O princípio do prazer corresponde a busca que todos empreendemos no sentido de ver atendidas todas as nossas vontades, todos os nossos desejos. Sentimos prazer, gozamos, quando o mundo a nossa volta, quando as pessoas com as quais nos relacionamos, quando a sociedade, o tempo, a história dos quais fazemos parte atendem às nossas expectativas, realizam as nossas fantasias, as nossas aspirações.

Já o princípio da realidade nos convida a aprender a viver, a nos relacionar com os limites, proibições, impossibilidades que a vida social, a presença do outro, as condições sociais e naturais nos impõe. Ele nos convoca a aceitar o Real como ele é, a não procurar moldá-lo às nossas ambições, às nossas concepções, às nossas crenças.

O princípio da realidade parte do pressuposto que lidamos com o mundo através da linguagem, dos conceitos, das imagens, dos símbolos e que eles não dão conta de dizer, exatamente, o que é o Real, até porque ele é cambiante, está sujeito a constantes mudanças, transformações, metamorfoses, catástrofes. A realidade humana, a realidade para os humanos se constitui em uma leitura do Real, a uma versão interessada e atravessada por limites e contradições do Real.

É através do princípio da realidade que os humanos tomam consciência de seu ser, do caráter limitado e condicionado de seu ser de sujeito, justamente por estarmos sujeitos a uma ordem natural, social e cultural. Se submeter ao princípio da realidade é assumir que como sujeitos humanos somos limitados, é aceitar que não podemos realizar todos os nossos desejos, tal como demanda o princípio do prazer. É se dar conta que mesmo sendo sujeitos capazes de imagens e de símbolos, capazes de linguagem, capazes de significar e atribuir sentido a todas as coisas, de humanizar tudo a nossa volta, não conseguimos que o Real se dobre aos nossos caprichos, que o Real nos obedeça.

Embora sejamos seres capazes de consciência, de racionalidade, de cognição, de conhecimento, de aprendizado, de ciência, de saber e de sabedoria, nossa realidade começa a ser limitada pela presença de nosso Real, que são nossas carnes, a nossa condição carnal, portanto, a nossa condição de seres mortais, de seres finitos. A primeira forma que o Real adquire para nós é a nossa própria condição de ser animal, biológico, que possui uma carnalidade sobre a qual não temos controle completo, que vive fugindo de qualquer forma de disciplina e ascese. O fato de termos carnes que desejam gozar, sentir prazer, carnes que nos sujeitam a dor, ao sofrimento, é a primeira forma que o Real assume para nós. Temos que elaborar versões do Real, construir realidades, condicionados pelo Real que nos habita até as vísceras.

O sujeito autoritário, o sujeito fascista, quase sempre, é aquele que quer que o Real se submeta às suas vontades, ao seu poder, ao seu domínio. Seu prazer, seu gozo advém de toda e qualquer situação em que ele parece estar no controle, em que ele se sente seguro de que o Real se comportará como ele quer e como ele espera. O sujeito autoritário, o sujeito fascista não se conforma se o Real não o obedece, se o Real contradiz e contraria suas maneiras de pensar e sentir. Ele é, por definição, um sujeito frustrado, um sujeito ressentido, um sujeito amargado pelo fato de que o Real não está aí para atender seus desejos de onipotência, de comando, de domínio, de segurança, de certeza. Querendo gozar, ter prazer de forma permanente e sem limites, buscando realizar sua insaciável busca de poder e de controle, ao esbarrar nos limites do Real, esse sujeito prepotente e arrogante, apela para a imaginação e para a simbolização como forma de extravasar suas frustrações, como forma de criar a realidade aos moldes do que deseja.

Não é nenhuma surpresa vermos os comportamentos dos sujeitos autoritários, fascistas que temos a nossa volta. Vivemos nos últimos anos, no país, o império da bizarrice e da insanidade, do delírio, da mentira, da mistificação, porque assistimos ao crescimento entre nós de pessoas que não toleram, que não convivem bem com o princípio da realidade, pessoas autoritárias que querem que o Real obedeça aos seus delírios de poder e de riqueza sem limites. A vida pública, as instituições republicanas e democráticas, que precisam da construção de consensos, de verdades construídas através do debate de ideias e do diálogo propositivo, se veem ameaçadas pela atuação de parlamentares, de agrupamentos e agentes políticos que espancam a realidade, que a buscam permanentemente falsificar, falsear, se ela não se molda a seus desejos e aspirações de poder, se não se adequam às suas ideias e valores. O bolsonarismo, a extrema-direita, com seus delírios de poder sem limites, de eliminação de qualquer contestação, de todo aqueles e aquelas que pensam e sentem diferentes, de imposição de verdades e certezas absolutas, quando contrariadas pelo próprio Real, se refugiam no mundo imaginário dos mitos, das fake news, das bolhas nas redes sociais. Se a realidade do mundo, se a realidade da natureza e da sociedade não os obedece, não são como eles esperam, constroem realidades paralelas, às custas de mentiras, de performances, de encenações, de lacrações, da manipulação dos meios de comunicação, das mensagens e dos eventos.

O negacionismo é a expressão dessa recusa de aceitar o Real, de aceitá-lo como limites, de encarar o fato de que ele nos ultrapassa, de que ele é maior que nós, que ele se nos impõe, que ele pode até nos destruir e matar (negar a existência real de um vírus mortal, negar a eficácia real de vacinas, entrar no mundo paralelo e delirante da cloroquina e ivermectina custou ao país 700 mil vidas). O negacionismo é a recusa a se curvar ao princípio da realidade, é a atitude infantil de se refugiar num mundo imaginário e fantasioso cada vez que se é contrariado pelos fatos. No lugar de fatos e eventos reais, a extrema-direita, inclusive no Parlamento, vive do factoide, da mentira, da impostura, perdida em seus próprios delírios, mitos e fantasias. Embora interesses econômicos e políticos bem reais financiem e sustentem essas forças políticas, elas estão levando a uma degradação nunca vista da vida política, da vida parlamentar, a medida que trazem para o debate público e para a atuação parlamentar a insanidade de negar a realidade mais comezinha: a de que perderam a eleição, a de que foram apeados do poder, a de que suas ideias, aspirações, pontos de vista ideológicos e morais são minoritários na sociedade, embora perigosamente muito expressivos.

A tentativa de golpe de Estado, do dia 08 de janeiro de 2023, só foi o desfecho de uma verdadeira marcha dos insensatos, dos delirantes, dos ensandecidos, sobretudo de sujeitos e personalidades autoritárias, fascistas, que para gozarem, para realizarem o seu prazer são capazes de destruir tudo à sua volta (explodir coisas e pessoas através do uso de uma bomba, quebrar os prédios dos três poderes da República, destruir cada objeto, conspurcar cada espaço). Naquele momento, através dos vídeos que os golpistas postaram, podíamos ver eles em estado de completo êxtase, de gozo máximo, de satisfação completa de suas vontades de domínio e de subjugação de qualquer oposição, de qualquer outro que se colocasse em seu caminho (se o general Gonçalves Dias tivesse tentado impedi-los, sozinho e desarmado, poderia ter sido morto). Nas falas desvairadas e autoritárias, o prazer indescritível de ter o Real dobrado às suas vontades, aos seus desígnios. Quando se viram numa fila de ônibus com destino aos presídios da Papuda e da Goméia, alguns finalmente se subjugaram ao princípio da realidade, se deram conta de que haviam cometido um erro ao acreditarem na realidade paralela, mítica, de fake news que eles mesmos criaram.

Mas, muitos, mesmo presos, continuaram culpando a realidade, culpando o Real por não serem como queriam. Não eram eles, os golpistas capazes de delírios como esperar a ajuda de extraterrestres (quando os únicos serem que estavam fora da terra e os insuflando a cometer a insanidade eram Bolsonaro, Anderson Torres, e outros seres fora de órbita como o generais Heleno e Braga Neto), de cantar hino nacional para pneu, de rezar no muro das lamentações dos quarteis, capazes de deixar todos seus afazeres para se quedar baixo chuva e sol numa barraca, de tentar para um caminhão à unha, que eram os insensatos, era o Real que estava errado, incorreto, era a realidade, essa comunista, que teimava em contrariá-los, que estavam errados e por isso deveriam ser suprimidos. Se não dava para ser através de um decreto (a minuta do golpe procurava afrontar a realidade da derrota eleitoral com uma farsa jurídica), seria através da força das bordoadas, facadas, cacetadas, do quebra-quebra.

Muitos vão passar quatro anos se negando a ver cada mudança que ocorrer, cada melhoria que acontecer, cada fato promissor. Vão passar quatro anos vivendo na realidade paralela criada nas redes sociais, onde ainda poderão gozar, sentir prazer, a despeito de o Real os contrariarem. Serão quatro anos vivendo na bolha autoritária e fascista, serão quatro anos tramando para tornar realidade seus sonhos, desejos, vontades e utopias autoritárias e fascistas. Precisamos estar atentos, porque a realidade humana é também a realização de projetos e aspirações. O Real pode não ser o bastante para limitar e conter os desejos de poder e dominação sem peias, que pode se tornar desejo assassino, de eliminação sangrenta de todo aquele que pareça ameaçar a chegada nesse paraíso autoritário (os assassinatos até de crianças em creches e escolas mostram onde o ódio aos limites impostos pelo outro, pela realidade pode chegar). Temos, nós defensores da democracia e de uma sociedade mais justa, igualitária e respeitadora de direitos, que atuarmos no sentido de criar e fortalecer uma realidade avessa a proliferação e prevalência desses tipos de sujeitos e subjetividades. Não podemos deixar por conta de o Real frustrar os delírios autoritários dessa gente, pois, quanto mais frustrados, mais perigosos eles se tornam.

*Esse texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor.