Feliz Ano Novo! Por que devemos desejar felicidade para os demais?

Nessa época do ano, é comum que desejemos um feliz Natal e um feliz Ano Novo para todas as pessoas com quem mantemos boas relações. O fazemos, muitas vezes, por mera convenção, por tradição e costume, sem avaliarmos direito o sentido que pode ter o desejar que as outras pessoas sejam felizes. Todos nós queremos ser felizes, todos valorizamos esse sentimento ligado ao bem-estar e ao sentir-se bem sem que, no entanto, tenhamos muitas reflexões acerca da importância social e política da condição de ser feliz. Num mundo em que a infelicidade é a condição de milhões de pessoas, seria importante refletirmos sobre o papel que a felicidade joga na vida social.

O filósofo francês Gilles Deleuze dizia que o poder gosta dos infelizes e, por isso mesmo, atua, na maioria dos casos, para produzir a infelicidade. O ser infeliz é, por definição, um ser fragilizado, um ser prejudicado em sua potência de vida. O poder gosta dos infelizes porque eles são mais facilmente manipuláveis, eles são mais facilmente enganados pelas mensagens de domínio e submissão. A pessoa infeliz é uma pessoa debilitada em sua capacidade de resistência, rebeldia e resiliência.

A pessoa infeliz está enfraquecida em sua capacidade de reagir aos ditames de um poder discricionário, está mais propensa a se entregar a uma vida de seita, a uma vida gregária, onde divide e partilha sua infelicidade com outros infelizes. O fascismo habita subjetividades infelizes, pois o vazio existencial, o sem sentido da existência, a solidão dos que se sentem marginalizados, distintos, fora do padrão, abre espaço para que esses seres se agrupem e partilhem suas infelicidades, suas frustrações, seus abandonos, se entregando a uma causa que dá sentido e um norte a vidas sem direção e sem valor social.

Essas pessoas que vemos cercando quarteis, levando chuva e sol, passando frio e calor, em nome de um golpe de estado, em defesa de seu líder fascista, são pessoas infelizes. São as várias formas de infelicidade que as agrupa, que as solidariza, que produz a motivação para que enfrentem as dificuldades e o ridículo do que estão fazendo. O bolsonarismo tem como um de seus combustíveis o fato de que milhares de pessoas são infelizes, são frustradas, são ressentidas, são tristes, muitas desejam, inclusive, a morte, de si e dos outros. A máquina de propaganda bolsonarista conseguiu aglutinar, através das redes, milhares de pessoas que não conhecem ou sabem o que é ser feliz, pessoas magoadas, sofridas, esvaziadas de sentido para a vida. O culto ao mito e a tudo que ele pretensamente representa: a pátria, a autoridade, a ordem, a família, o anticomunismo, o militarismo, as armas, a ditadura, consegue dar sentido a vidas que estavam à deriva, que estavam boiando no sem valor e no sem significado.

Não é mera coincidência que dediquem ao líder e às instituições de onde ele advém, as Forças Armadas, um verdadeiro culto, numa espécie de sacralização do poder, pois as religiões se alimentam, sobretudo, da infelicidade humana. São os infelizes que enchem os templos e os bolsos de pastores, padres e líderes religiosos de todas as seitas. Aos infelizes restam a fé, a esperança em dias melhores, sentimentos que são explorados pelos vendilhões dos templos. O bolsonarismo é uma curiosa mistura entre seita religiosa, facção política, milícia analógica e digital e grupo paramilitar.

A disposição para crer, para acreditar em narrativas as mais fantasiosas e sobrenaturais se apoia no fundo religioso, na origem crente e crédula da maioria de seus militantes. Faz parte da infelicidade a busca fantasiosa e imaginária por paraísos, por messias, por milenarismos, por salvadores, por milagres e eventos extraordinários que acontecerão em setenta e duas horas. O infeliz, que sofre, sonha, delira, constrói realidades paralelas que venham aliviar a sua dor, o seu desespero, a sua angústia. Não haveria deuses e mitos se os humanos fossem felizes, se não tivessem medo, se não se sentissem fracos e desamparados, se não buscassem algo que lhes ofereça consolo e conforto.

O Bolsonaro que chora, infeliz, em público, a Michele que verte lágrimas, de joelhos, em frente ao palácio, enquanto são objeto de um curioso culto, de uma curiosa oração de infelizes, explicita como é esse sentimento que os agrupa, que os articula, que os irmana. Carlos Bolsonaro, o infeliz filho preferido do pai déspota, o maquiavélico elaborador da propaganda do clã, sabe que essas aparições sofridas, as dores da erisipela e da derrota é o que irmanam o líder e sua base adoecida física e subjetivamente. A derrota eleitoral só reforçou a identidade de mártires, de vítimas do sistema, do Supremo Tribunal Federal, de sofredores numa sociedade onde ninguém deve ter o direito de ser feliz. Essas pessoas têm medo de ser felizes pois fizeram e fazem da infelicidade a sua própria vida, retiram dela prazer e significado para a existência. Na infelicidade dos outros está a sua recompensa e a justificativa do que fazem. Autoritários, querem que seu mal-estar se torne majoritário, que seu desejo de destruição e morte, seu desejo de vingança, chegue a todo mundo.

O filósofo Baruch Spinoza alertava para o perigo de nos entregarmos às paixões tristes. Holandês, filho de judeus sefarditas fugidos de Portugal, por perseguição religiosa, Spinoza já associava sentimento religioso e paixões tristes, ou melhor, como as instituições religiosas viviam da exploração da infelicidade alheia. Spinoza defendia que as paixões tristes nos enfraqueciam, retiravam a nossa potência de existir, minavam a nossa capacidade de viver. Uma pessoa frágil, uma pessoa minada em sua autoestima pela tristeza, pela infelicidade, seria uma presa fácil para todas as formas de poder. Seria esse tipo de pessoa que se tornaria facilmente o fanático, o integrista, o seguidor cego de uma dada organização, de uma dada forma de pensar. 

No infeliz o senso crítico estaria comprometido, o bom senso e a razoabilidade estariam ofuscados pela dor e pela irracionalidade que ela potencializa. 

De forma pioneira Spinoza não separava racionalidade de sentimento, de paixões. Nossa razão é afetiva, é sentimental, é passional. Muitas vezes elaboramos razões, racionalizamos, construímos narrativas que justificavam, de forma pretensamente racional, nossas disposições afetivas, nossas paixões e nossos sentimentos. Muitas vezes produzimos verdadeiras disfunções cognitivas ao procurarmos reafirmar como verdadeira e crível a narrativa que melhor se adequa e legitima nossas paixões, mesmo que ela guarde pouco contato com a realidade.

Vemos todo dia à nossa volta, em nosso país, em nossa família, em nossos locais de trabalho pessoas se esforçando para sustentar narrativas acerca do país, acerca da realidade que achamos simplesmente delirantes e verdadeiramente mentirosas e enganadoras. Mas o que esquecemos é que esse autoengano, essa mentira, tantas vezes repetida como verdade, essa narrativa que não tem amparo nos fatos, ela está sustentada por um grupo, por uma comunidade, por uma facção política, por centrais de distribuição de sentido que o faz de modo pensado e calculado, que sabem que atingirão os infelizes que precisam nela acreditar para que sus vidas, suas ações, sua existência continuem tendo algum sentido.

Como desarmar a barraca, como recolher a bandeira, como deixar de cantar o hino e ouvir o dobrado e o hino militar, como voltar para a vida cotidiana, medíocre, onde não se é ninguém, onde não se vai salvar o país, como deixar de ser patriota e admitir que foi apenas um crédulo, a acreditar em mensagens plantadas e criadas por influencers? Como voltar para a solidão, para o desamor, a infelicidade de seu apartamento, de sua casa deserta, de suas relações familiares destruídas, de sua vida sexual pobre e mal resolvida? Como deixar de se sentir útil, de voltar a ser alguém com futuro e construtor de futuro, para voltar a sua vidinha de pijama, de aposentado largado como um traste velho atrapalhando a casa, como um militar da reserva, antes símbolo de virilidade e macheza e agora vivendo a decrepitude e a impotência?

O acampamento não pode acabar, não pode ser fechado, mesmo debaixo de raios e trovões, de escavadeiras e rojões, de dilúvios e decepções, pois se terá novamente que, sozinhos e sozinhas, encarar a própria infelicidade, ainda mais agravada pela derrota do sonho autoritário e fascista que, pretensamente, viria tamponar todas as dores, aplacar todos os ressentimentos, realizar todas as vinganças, superar todas as humilhações, dar força aos que dela estão carentes, dar vigor aos decrépitos, fazer vencer as crenças daqueles que sequer são mais ouvidos.

Devemos sempre desejar a felicidade aos demais pois a infelicidade é uma força destrutiva da própria vida social e da vida de cada um em particular. Buscar a felicidade coletiva é a única maneira de sermos felizes e construirmos um mundo menos destrutivo e violento. Enquanto a terra for majoritariamente o planeta dos infelizes continuaremos mergulhados no medo, na inveja, na raiva, no ódio, na desesperança, na vingança, na violência. Por isso, a principal tarefa política que nos cabe, a única forma de deixar o fascismo para trás é buscar construir a felicidade da maioria, é fazer homens e mulheres felizes. A felicidade é a força que irmana, que aproxima, que constrói relações de solidariedade e cooperação. A pessoa feliz é generosa, aberta ao outro, é acolhedora, é alguém disposta a se expor para o encontro com o outro.

Sabemos que são muitas as forças que vivem da e apostam na infelicidade alheias. As elites brasileiras parecem pouco se importar com as milhares de pessoas infelicitadas pela fome, pela miséria, pelo abandono completo por parte do poder público, querem apenas gozar de sua felicidade mesquinha e privada, do atendimento a seus interesses egoístas, privados. Parte da grande imprensa mais uma vez deixa claro que a infelicidade da maioria dos brasileiros não a preocupa, somente seus lucros e daqueles que a financia. A Folha de São Paulo e a CNN ao rotularem uma emenda a Constituição que visava apenas garantir recursos para o pagamento de uma renda mínima aos mais pobres de PEC da Gastança e PEC do Estouro deixam claro que a infelicidade de milhões de pessoas morando nas ruas e sem ter o que comer não é sua preocupação, torcendo para que o governo eleito, que nem tomou posse, dê errado, ou seja, nesse caso parece que a felicidade deles será a infelicidade da maioria, como ocorreu com o golpe que apoiaram e patrocinaram. Os deputados pastores que votaram contra o Bolsa Família deixam claro que é da exploração da infelicidade alheia de que eles vivem.

A essa gente não dá para desejar feliz Ano Novo, pois a infelicidade deles, em 2023, será a felicidade da maioria do povo brasileiro. Que eles sejam bastante infelizes no ano que entra, para que a maioria de nós sejamos felizes e possamos superar esse quadriênio em que eles foram felizes e a maioria do povo navegou na tristeza e na desesperança. Como se vê até a felicidade é política e não pode ser distribuída igualmente para todos, que ela seja da maioria e não da minoria que há muito infelicita o país.

*Esse texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor.