Ninguém duvida que existe uma culinária nordestina, que existem comidas regionais, comidas típicas do Nordeste. Essa ideia se encontra tão naturalizada, que ninguém pergunta como é que historicamente ela se constituiu. Da mesma forma que o surgimento da região não é problematizado, o mesmo se dá em torno do que seria a cozinha nordestina.
E o mais relevante e significativo, é ninguém se perguntar, como uma região marcada pela miséria, pela fome endêmica (cotidiana, permanente, silenciosa) e pela fome epidêmica (as crises agudas de fome provocadas pelas secas e má colheitas), para usar os termos consagrados pelo livro Geografia da fome, de Josué de Castro (1908-1973), tem na alimentação um elemento de definição identitária?
Como uma região, onde a maioria da população, em dados momentos, têm dificuldade em se alimentar, possui uma “rica cozinha regional”, um elemento central da indústria do turismo regional?
Poderíamos, sem dúvida, considerar que, justamente por padecerem de fome, de carência alimentar, as populações dos estados nordestinos devotam especial atenção às comidas, ao ato de se alimentar. Na região, a fartura de comida é indício de prosperidade e de felicidade, daí porque não se conceber uma festa, uma comemoração, sem que se dê em torno da prática de comer. Nos meios populares, notadamente nas áreas sertanejas, dizer que alguém “está gorda chega está lustrosa”, que alguém está “forte”, é um elogio e indica que a pessoa está bem de saúde. Podemos dizer, tal como fez o cineasta baiano Glauber Rocha (1939-1981), que em dadas áreas do Nordeste há uma estética da fome, onde o comer muito e o engordar fazem boa figura.
Mas a associação entre a identidade regional nordestina e uma dada culinária regional foi feita pelos intelectuais, notadamente pelos folcloristas, que capitanearam a invenção da região. As comidas, as práticas e preferências alimentares constituem uma linguagem, constituem um repertório de signos e de símbolos, que servem para dar sentido e significado a uma dada espacialidade.
Esses intelectuais utilizaram a alimentação como mais um traço definidor da particularidade dessa região Nordeste que se inaugurava. Uma das figuras centrais nessa elaboração da ideia da existência de uma cozinha regional e tradicional nordestina foi o sociólogo pernambucano Gilberto Freyre (1900-1987). Freyre, que era um glutão, um aficionado por comidas, vai fazer das comidas senhoriais, das comidas aristocráticas das casas-grandes, comidas feitas, segundo ele, por “mãos de sinhá”, a base do que seria a culinária regional. As reuniões do Centro Regionalista do Nordeste, fundado por ele em 1924, para elaborar o que seria essa região do ponto de vista político e cultural, são todas acompanhadas de lanches regionais.
Quando realiza o Congresso Regionalista de 1926, evento fundamental para a fixação da identidade nordestina, toda a programação é acompanhada por cafés, lanches, almoços e jantares regionais, em que vai se selecionando dadas receitas e dadas iguarias como sendo da região. Nesse Congresso, ele lê uma comunicação que trata da importância da preservação dos hábitos alimentares regionais diante da ameaça de descaracterização, representada pela importação da culinária francesa e pelas comidas enlatadas. Ele considera o paladar o sentido mais tradicionalista e defende a tese de que uma região e uma nação que perdem a sua culinária, os seus hábitos alimentares, perderiam sua alma.
Ora, mas de que culinária e alimentação Freyre está falando? Evidentemente ele está se referindo a alimentação das classes sociais que comem com fartura, aqueles que se alimentam das iguarias feitas “pelas mãos negras das quituteiras”, que obedecem ao engenho culinário das sinhás, que aprenderam com suas mães ou com as freiras a misturar os ingredientes da terra, (muitos de origem indígena, como a mandioca ou africana, como o coco), com as frutas tropicais, com o açúcar produzido pelos engenhos.
Uma nítida divisão de classe surge entre quem pensa as receitas, quem as escrevem em seus cadernos, as senhoras brancas, e quem as executa, as mãos negras das mucamas e escravas, que queimavam a barriga na beira do fogo. Em 1939, ele reúne uma série de receitas de bolos e doces feitos nos engenhos e publica o livro intitulado "Açúcar": algumas receitas de bolos e doces dos engenhos do Nordeste. Algumas dessas receitas, como a do bolo Souza Leão, uma iguaria típica de Pernambuco, hoje em dia, eram segredos de família, eram uma espécie de símbolo heráldico, uma espécie de brasão familiar, pois só servido nos lanches e cafés da casa-grande dessa família.
Nunca se pensou em consagrar o angu comido pelos escravos como comida regional, embora algumas comidas populares (sobretudo de origem indígena) tenham sido introduzidas nas casas-grandes e adotadas pelos senhores, notadamente no sertão, onde o fornecimento de alimentos era mais precário.
Quando Freyre elege a alimentação, quando ele escolhe fazer uma sociologia do doce, como elemento definidor da região é porque as comidas e as práticas alimentares das casas-grandes senhoriais, tanto da Zona da Mata, quanto do sertão, seria para ele um marcador da singularidade regional e trazia os traços que ele valorizava e através dos quais definia o que seria a própria particularidade da cultura brasileira, já que para ele a nação se definia pelo conjunto de suas regiões: a culinária nordestina seria fruto do cruzamento de ingredientes e práticas de feitura e preparo dos indígenas, dos negros e dos brancos, sendo portanto mestiça.
O ato de preparar um alimento lidava com duas operações que eram valores centrais na maneira de ver o mundo de Freyre: ele implica misturar e harmonizar, equilibrar elementos. Uma comida não nasce do conflito, mas da amálgama, da síntese de elementos. O ato de se alimentar seria mais arraigado a tradições, mobilizando as memórias de infância e juventude e dependeria do contexto regional de solo, clima, fertilidade, formas de produção, hábitos e costumes agrícolas.
O ato de se alimentar remete a vida doméstica, à centralidade social da casa, que o mundo burguês dos negócios públicos vinha destruindo. Em torno da mesa senhorial, o poder do patriarca se reafirmava e reforçava, sua voz e vontades se fazia ouvir. No ato de servir e ser servido à mesa, se atualizava e se explicitava as hierarquias sociais (entre serviçais e servidos), as hierarquias raciais (os brancos comem, os negros servem), as hierarquias de gênero (a mulheres servem aos homens), as hierarquias de poder (havia uma ordem no servir-se que começava pelo visitante ilustre, pelo dono da casa e terminava com as serviçais na cozinha, que comiam o que sobravam do repasto senhorial).
Ao escolher o doce, Freyre reafirmava sua versão docilizada da história nacional, dando da cozinha regional uma visão muito distante da amargura da vida da maioria daqueles que, tinham muito, quando dispunham do feijão duro com farinha, sem mistura, sem frutas ou verduras, comendo carne e arroz só em festa, quase sempre quando o coronel, o patrão, o senhor os ofereciam, comendo de pé, no terreiro.
Não se vai encontrar nos restaurantes regionais, caríssimos, só acessíveis aos turistas e a classe média, a boia fria do peão, a papa d’água servida com o dedo, a garapa de açúcar, a raiz da mucanã ou do umbu, um pedaço de macambira, alimentos da fome e do desespero de milhares de crianças e adultos nordestinos.
*Este texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor.