É meio da manhã quando o carro estaciona. Nunca fez tanto frio em Fortaleza. Frio teimoso e egoísta: só dá naquele bocado de gente. Estão todos reunidos aguardando os sinais do veículo – bagageiro levantado, decoração de corações, caixa de som altíssima. Alguém para ler uma mensagem. Loucura de amor. Na quase neve da cidade, neve de saudade, esse adeus regado a romantismo. Tristeza calibrando o termômetro.
Alguém morreu.
Naldo, olhos de choro, está dentro da capela encarando Ana Vládia. Ela agora dorme sem medo e para sempre, os fantasmas já foram embora. Mas talvez ouve lá fora, quando a música começa a tocar: “Minha meiga senhorita/ Eu nunca pude lhe dizer/ Você jamais me perguntou/ De onde eu venho e pra onde vou”. Vicente Nery rompe o caixote, voz que propaga o bem-querer. A canção favorita é também a última. Naldo sabe disso.
Durante os últimos 23 anos, ele soube quais eram as canções, as palavras, os gestos. Todas as canções, palavras e gestos. Desde o dia em que conheceu Ana Vládia, num parque de diversões, sentiu subir ao céu. Já estavam na Capital, embora tenham nascido no interior. Canindé semente, Fortaleza pátria. Pouca idade ainda, os dois sonharam juntos e cumpriram. Ele com 17, ela com 13. Um ano depois, mesma casa e lençol. União.
Mas ela olhava para ele e às vezes não reconhecia. Naldo exagerado, Naldo desequilibrado, Naldo sem ser Naldo. Álcool e tropeço. Onde foi parar aquele aconchego, o abraço-ninho da pessoa preferida? Vládia respondeu com a vida. Fez sacrifícios – descobertos pelo marido tempos depois. Naldo lembra de ouvir ela contar para as amigas quando tudo passou. À espreita, coração arrebentava.
Vládia não jantou na noite em que a refeição era apenas um ovo. Omitiu a fome para dar de comer ao companheiro e aos três filhos. Julgou que precisavam mais do que ela. Possível que tenha chorado, camuflado a dor no travesseiro. Possível que rompesse o limite da sanidade: agiu em instinto de sobrevivência. Garantir o bem-estar de quem se ama é ouro. Nutrindo todos, sustentava a alma. A calma.
Ali, Naldo reparou: é nada o tempo para expressar a quem se gosta o quanto se gosta. Tem mesmo é que gritar o nome da pessoa aos quatro ventos. Pra não deixar que escape o encantamento, o que tem para dizer. Outro dia, alguém falou que é tudo pouco demais no muito que nos abriga. Poucas horas para passar, poucos detalhes para desbravar, existência em curso e crescendo. Que seja agora a hora de afundar no seu alguém.
Uma década de loucuras de amor. Todo aniversário, Dia das Mães, bodas de casamento e adiante foi a mesma coisa. Tradição em cor vermelha. Vizinhos já sabiam, população se preparava. Mas Ana Vládia era sempre surpresa quando ouvia a mensagem irrompendo entre os filhos e amigos, o povo observando Naldo esticar o mundo dos dois. Era bom. Trazia sorriso. Suspiros ao longe, todos tão emocionados. É nada o tempo do sentir.
Tem seis anos que cada loucura poderia ser a última, porém. Vládia descobriu um câncer de mama. Que se alastrou para os ossos e se alojou feito brasa. Feito bala. Foi quando o universo começou a turvar. Vieram as dores, os temores e as mudanças. Cabelinho que ia, membros definhando. Rompimento quase anunciado. Ela cogitou se separar para não estender o sofrer. Naldo não deixou. “Se Deus permitiu a gente junto até hoje, a gente vai até o fim”.
Foram. Estão. Conexão que não rompe. Naldo conseguiu até ouvir o último suspiro de Ana Vládia ao telefone. Conversava com o médico da Santa Casa de Misericórdia em busca de novidades quando aconteceu. Ela se foi leve e serena. “Depois, só peguei o carro e fui pra lá, ficar do lado dela”. Acariciou a testa e as mãos. Gravou a face. Ela parecia dançar de novo, brincar com as coisas que se brincam. Viver mais uma vez a vida diária.
Hoje, numa das dezenas de blocos do residencial Cidade Jardim, no José Walter, a casa só espelha Ana Vládia. O quarto do casal segue com a decoração feita por ela. A mesa e o sofá ainda resguardam o cheiro. Os filhos sentem de um lado, o pai do outro. Naldo só queria fazer uma última loucura de amor. E fez.
Se você pensar, consegue ouvir. Homenagem a quem mudou tudo. O som do carro canta ao longo do velório: “Aqui é pequeno mas dá pra nós dois/ E se for preciso a gente aumenta depois/ Tem um violão que é pras noites de lua/ Tem uma varanda que é minha e que é sua/ Vem morar comigo/ Meiga senhorita/ Vem morar comigo”.
Esta é a história de amor de Antônio Arinaldo dos Santos e Ana Vládia Nascimento Almeida dos Santos. Envie a sua também para diego.barbosa@svm.com.br. Qualquer que seja a história e o amor.
*Este texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor