Casal larga tudo, passa a morar em Kombi e viaja pelo país compartilhando amor: ‘Mudamos pra melhor'

Kelly e Eliete saíram do interior de São Paulo em abril do ano passado; neste momento estão no Ceará cultivando um olhar diferente sobre o mundo, sobre cada uma e sobre a relação das duas

Primeiro as pessoas notam a cor – o amarelo nada tímido de uma Kombi 1999. Depois veem que ali moram duas mulheres. Elas são simpáticas e gostam de conversar. Têm sotaque paulista e não conferem notificações. Parece que estão só viajando, mas descobrem a si mesmas todos os dias. Kelly e Eliete têm história bonita para contar. História de amor.

A aventura começa em 2012. Conectaram-se por meio do bate-papo Uol. Vontade suave de permanecer, de prosear o dia inteiro. Falar sobre trabalho, família, amigos. Kelly auxiliando Eliete nas coisas burocráticas, ajudando-a a comprar uma moto. Eliete se acarinhando com aquele coração todo emocionado da Kelly, as fofuras que ela dizia. Foi fácil firmar amizade.

Avançaram para Orkut, MSN, telefone. Todas as redes e conexões virtuais possíveis. Até que chegou o dia em que a Eliete resolveu ir numa festa de aniversário da Kelly. Sair de Araraquara e alcançar Ribeirão Preto, interior de São Paulo. Driblar aqueles 70 quilômetros de distância para finalmente conhecer a luz de perto. E senti-la.

Bastou isso para tudo acontecer e avançar. Perceberam que aquilo entre as duas não era só camaradagem, não. Era chamego, fascínio, romance, chame como quiser. “Sabe aquela coisa que dizem que lésbicas são emocionadas? Faz sentido. Já ficamos juntas no primeiro dia. No fim de semana seguinte ela voltou pra casa, e foi isso. Foi acontecendo”, recorda Kelly.

Dois anos depois – entre idas e vindas de uma cidade a outra – alugaram apartamento em Ribeirão Preto. O lar da ternura. Juntas, aumentaram a família. Jeremias e Frederica vieram, cachorrinhos em ritmo de novidade. Vieram também rotina, planos e uma dura realidade. É que, com as demandas do trabalho, o casal não vivia de verdade.

Saíam às 9h da manhã e retornavam apenas às 23h. Estafa, estresse, exaustão. Quando aquilo ia parar? Precisou acontecer algo muito grave. A mãe de Kelly faleceu. E por razões que poderiam ser das duas – aquele cansaço, aquela falta de tempo para a vida de verdade. Era hora, então, de realmente pausar e escutar o coração. Foi a própria Kelly quem sugeriu.

Que tal viajar pelo país, fazer um mochilão? Se antes Eliete – tão racional e afeita a estabilidade – nem pensava na possibilidade, começou a considerar a ideia-sonho da namorada. Seria bom se afastar do cotidiano e abrir espaço para o novo. Novas paisagens, novas pessoas, novas experiências. Mas não seria mochilão. Reuniriam economias, largariam empregos, comprariam uma Kombi e passariam a viver nela. Foi o que houve. É o que é.

Após casarem em 26 de março de 2022, saíram de São Paulo na caranga – apelidada de Paçoca, devido à cor – no dia 21 de abril de 2023. Neste momento, estão em Flecheiras, litoral oeste do Ceará. Passaram por 11 Estados. Estão felizes. Estão bem. Não são mais açougueira nem operadora de logística. Viraram artesãs e tudo o que precisar ser. Ao chegar em cada local, vão logo se ambientando, buscando afazeres, trocando impressões.

A Kombi foi toda reformada pela própria Kelly – que se descobriu alguém muito vocacionada para a Mecânica – e parecia ser do casal desde o princípio. As duas chegaram até o veículo por meio de alguém nas redes sociais que um dia havia morado na casa que elas residiam. “Ela tinha que ser da gente”, brinca Eliete, dizendo que fizeram questão de incluir na porta do carro: "A vida é agora".

Quanto à convivência na estrada, às vezes é desafiadora. “Agora a gente passa o dia todo juntas. Dorme, acorda, sempre uma do lado da outra. Estamos há um ano nessa, mas é como se já estivéssemos há cinco. Acontece muita coisa. O importante, claro, é respeitar a individualidade, considerar que também precisamos de nossos momentos”.

Relevante também manter o apelido que há dez anos cultivam. Chamam uma à outra de “mormeu” – abreviaçãozinha de “amor meu”. É bonito. Igualmente essencial é não apenas aproveitar as paisagens, mas dar-se conta de que o mundo e as pessoas valem a pena. Sentem isso toda vez que estacionam a Kombi junto a Jeremias e Frederica. De repente, estranhos se tornam amigos ao dividir uma palavra, um alimento, uma companhia. 

“Fomos acolhidas em vários lugares. Teve casas que a gente passou e os moradores nos convidaram pra almoçar sem nunca ter visto a gente na vida. Algumas famílias realmente nos adotam. Esse calor humano do brasileiro – principalmente no Nordeste – é incrível. Mexe muito com a gente, a forma como as pessoas lidam com tudo”.

Quanto ao amor – sobretudo neste mês, dedicado à Visibilidade e ao Orgulho Lésbico – dizem que é sinônimo de leveza. Querer rir, brincar e implicar com quem se gosta. Querer apoiar, escutar e ir além. Enxergar a possibilidade de ser você, mas um pouco moldado pelo outro também. A Eliete continua bastante pé no chão, mas reconhece que a Kelly a faz flutuar. A Kelly, tão emoção, se agarra na Eliete para ter mais coragem, ser mais racional.

“Quando a gente tá na estrada, vemos aquela imensidão do mar, todas aquelas florestas fechadas, e sentimos uma felicidade tão grande, tão grande, que ficamos leve. É muito curioso: algo tão grande e que pesa menos”.

Por isso não devem parar tão cedo. Na sequência, seguem para o Norte e para o Centro-Oeste do Brasil. E, no lugar em que mais se apaixonarem, fincarão presença e terão moradia fixa. Sem pressa, porém. Tudo no tempo do tempo. Leve feito o amor. “Mudamos pra melhor. A meta é continuar nesse equilíbrio. Tem nos feito bem”.
 

Esta é a história de amor das amantes e aventureiras Kelly Cristina Silva Tavares e Eliete Epifânia dos Santos. Envie a sua também para diego.barbosa@svm.com.br. Qualquer que seja a história e o amor