Dez anos atrás, se nos contassem o que tem acontecido neste Brasil de 2021, tudo iria soar exagerado como história de pescador. Seríamos remetidos às histórias de capitães e marujos dos tempos das caravelas, que asseguravam ter navegado por oceanos povoados de monstros, inscritos nos mapas daquela época que chegaram até nós. Quisera fossem apenas histórias para causar assombro.
O que hoje emerge das águas profundas mais parece nascido da fantasia, do delírio. Não são mentiras, mas nascem delas.
Assiste-se a uma permanente tensão política, e os políticos se ofendem quando é dito que agem politicamente e com interesses políticos. Sem nem sequer termos saído de 2020, é sobre 2022 que já trocamos tapas. Líderes espirituais desejam a morte de alguém por uma forma de amar que condenam e o último ato de um humorista foi fazer todos chorar. A tropa que sobe o morro para garantir segurança desce junto da notícia de mais uma chacina.
Enquanto outras terras já se despedem de máscaras, retomam os abraços e programam, para o verão, grandes festivais com shows de astros de rock e divas pop, aqui se calcula quando chegará a terceira onda e o próximo lockdown. A fome bate à porta e, se o ar não inflama, é porque o preço da gasolina é proibitivo.
O exemplo dos países vizinhos e daqueles distantes é roupa que não nos cabe. A opção é pelo que a razão contorcionista diz ser "ainda discutido entre os especialistas". A publicação científica indexada vale tanto quanto a última mensagem do WhatsApp em caixa alta. Talvez menos. É a ciência do “você sabe com quem está falando?”.
Não vai espantar quando surgir a ideia de promover pulverização aérea de medicamentos, álcool 70%, xarope caseiro ou agente laranja.
Duas histórias náuticas parecem dizer algo do Brasil, profetizando os dias correntes ou fazendo troça da situação. Como os passos por aqui parecem seguir a direção dos calcanhares e não dos dedos, comecemos pela mais recente e sigamos rumo ao passado mais remoto.
Lançado há 36 anos, um romance de José Saramago contou uma desventura geográfica com ares fantásticos. Rachada a cordilheira dos Pirineus, Portugal se desprendeu da Península Ibérica. O país deslizou no oceano Atlântico, se afastou da Europa. Navegou.
Era "A jangada de pedra”, como no título do livro. Não é difícil imaginar o Brasil, com seu jeitão estranho, soltando-se por aí, ficando ainda mais distante da Latino América e sem conseguir encontrar o olhar da África e da Europa. Esses parentes distantes estariam nos evitando?
Outra história, essa escrita pelo alemão Sebastian Brant, entre 1458 e 1521, é “A Nau dos Insensatos”. O título é polido. Embarcados, viajam 112 loucos, cada um representando certa conduta humana. Engana-se quem pense que Brant seja um moralista simplório, criticando a insensatez. Seu alvo é muito mais o apego à insanidade, a recusa em reconhecê-la, o delírio voluntário e voluntarioso.
Na nau insensata que nos carrega - descolada, não do continente, mas da própria realidade e da razoabilidade -, o bonito verso de Fernando Pessoa é lido de forma literal: “navegar é preciso, viver não é preciso”.
Melhor seria ler, também ao rés da frase, literalmente, uma frase da carta de Pero Vaz de Caminha, após descrever as riquezas do Brasil. “Porém o melhor fruto, que nela se pode fazer, me parece que será salvar esta gente”.
Sem reis para receber a carta, sem monstros nos mares, resta-nos salvar a nós mesmos. E como escrevo daqui do Ceará, terra de jangadeiros, não posso deixar de notar que, sim, podemos navegar, conduzidos não por lorotas e alucinações, mas pela perícia, matéria feita de conhecimento e experiência.
Que voltemos das águas perigosas, que reencontremos a terra firme.