A receita do gato

Assistir a filmes “leves”, ver aqueles que o Oscar 2021 indicou, maratonar séries, ler sobre terras distantes, dormir o máximo possível. Multiplicam-se as receitas para, oportunamente, se fugir à realidade lá fora. Isso, claro, para aqueles que não a viram irromper porta adentro e revirar a casa, a cabeça e a vida. São respiros. Ninguém precisa que se diga a importância de tomar um ar agora. 

As fugas têm validade e eficiência diversas. Dependem de cada um. São, em regra, biográficas. É assim a que encontrei num livro, uns poucos dias atrás. Por mais absurda que pareça, faz sentido o suficiente para que aqui se professe a sua verdade. “Quando você não se sente bem, é só olhar para os gatos, você logo se sente melhor, porque eles sabem que tudo é simplesmente do jeito que é”.

A receita é dada pelo escritor germano-americano Charles Bukowski. A literatura do “Velho Safado” chegou a ser definida como “realismo sujo”. É tudo, exceto autoajuda, e a intenção de seu autor, certamente, não era tornar ninguém melhor. Ainda assim, foi um evangelista dos felinos, animais “salvadores”. 

Em seu poema “Perfeitamente bem”, ele repete a receita de olhar para gatos: “é uma lição de perseverança contra as adversidades, e/se você puder olhar para 5 gatos é 5 vezes melhor”.

Bukowski assegurou que quanto mais desses animais você tivesse, mais viveria. “Um dia vão descobrir isso, e as pessoas vão ter mil gatos e viver para sempre”. Antes que perguntem, o escritor morreu em 1994, aos 73 anos; e, para alguém que bebia tanto quanto ele, isso foi bastante tempo. 

Sim, há exagero na forma que Bukowski escreve sobre seu “pet” favorito. Mas o exagero, ou até mesmo uma devoção, marca o testemunho daqueles que se renderam à verdade de que é melhor você ter um gato do que não o ter. Se parece um disparate, experimente. 

No século XIX, o poeta Théodore de Banville escreveu um pequeno tratado, com o título não apenas bonito como apropriado de “O gato”. Nele, relembra de outros admiradores dos muitos predicados felinos, como Théophile Gautier e Charles Baudelaire. (Poderíamos adicionar outros nomes então não nascidos, também do mundo das letras: Ernest Hemingway, James Joyce, Doris Lessing, Pablo Neruda e os nossos Guimarães Rosa e Ferreira Gullar). 

Segundo de Banville, e quem já convive com gatos terá razões para nele acreditar, “tudo o que o homem civilizado tem de glória, de orgulho e de charme profundo me parece ter sido servilmente copiado do gato”. A elegância, a beleza e o senso de liberdades foram e são repetidas vezes elogiados. 

“O gato ama o repouso, a volúpia, a alegria tranquila, demonstrando assim o disparate e o vazio da agitação estéril. Não exerce nenhuma função e só sai do repouso para dedicar-se à bela arte da caça, mostrando assim a nobreza da ociosidade refinada e reflexiva, sem a qual todos os homens seriam cortadores de pedras. É ardoroso, divino, encantadoramente limpo e esconde com cuidado seus excrementos: já não é uma imensa vantagem em relação a muitos artistas, que confundem sinceridade com mediocridade?”, escreve de Banville sobre homens e gatos, dando a uns e a outros o que merecem. 

Neruda, em sua “Ode ao gato”, deixa claro porque há de se imitar o animal. “O homem quer ser peixe e pássaro,/ a serpente quisera ter asas,/ o cachorro é um leão desorientado,/ o engenheiro quer ser poeta,/ a mosca estuda para andorinha,/ o poeta trata de imitar a mosca,/ mas o gato/ quer ser só gato/ e todo gato é gato/ do bigode ao rabo”.

É um retrato raro dessa musa de bigodes, por tentar compreendê-la a partir de uma apreciação existencial. Outro poeta, Ferreira Gullar, também o fez. Mas, como a maioria, escreveu a partir da observação do bicho.

“O gato é uma maquininha/ que a natureza inventou;/ tem pelo, bigode, unhas/ e dentro tem um motor./ (...) É um motor afetivo/ que bate em seu coração/ por isso ele faz ron-ron/ para mostrar gratidão”, versejou Ferreira Gullar, pensando nos pequenos leitores.

Foi o poeta maranhense também quem melhor traduziu o luto e o amor pelos gatos que esgotaram suas sete ou nove vidas. Numa crônica, falou da presença daquele que havia partido: “o sinto roçar em minhas pernas, debaixo da mesa, sem que me atreva a espiá-lo. Prefiro não vê-lo a não vê-lo”. 

Olhar os gatos, como se vê, é essencial. É o oposto da saudade e de outros apertos de que são feitos os dias difíceis. A literatura muito destacou a apreciação visual da existência felina. Mas gatos não são exatamente como pinturas, por belos que sejam – e todos o são. Em certo sentido, são mais parecidos com livros, como os ama um bibliófilo. Nos alimentam pelos olhos, mas a experiência só se completa no toque, no cheiro, na beleza nos detalhes, no cuidado que inspiram, na sabedoria que portam e, mais do que tudo, na necessidade de tê-los por perto e voltar a eles.    

Se o leitor engatinhou até aqui, talvez tenha esquecido um pouco do barulho lá fora, das angústias aqui de dentro. Para se viver mais, talvez um milheiro de miaus não seja o melhor a se providenciar (a aposta mais segura ainda é recorrer às máscaras, à vigilância da higiene, ao distanciamento e ao confronto do negacionismo). Já para se viver melhor, poucas receitas serão tão milagrosas quando que a de se ter um gato.