Eu dirigia gastando estrada e enredando entre os dedos o sopro dos quilômetros por hora corridos quando me senti curada. Uma sensação enorme de corpo e mente saudáveis. No som do carro, uma música de tempos atrás soava firme - mas era leve nos ouvidos - em meio à moderna travessia celular-bluetooth-ouvidos.
Os versos estacionaram no meu coração e eu aproveitei o semáforo vermelho para fechar os olhos por alguns segundos. Vi águas calmas, grama verde, um céu de mar inteiro pra mim. Abraços, risos e mergulhos. Respirei profundo, puxei o ar com a força das batidas da canção e do peito, que se confundiram ao firmarem-se em mim feito energia pulsante. Eu já não era a mesma de minutos atrás.
Absolutamente fincada, nos últimos dias, na presente rotina do isolamento, da distância entre corações e corpos, naquele momento, esqueci por alguns segundos a pandemia, voltei ao passado enquanto a eternidade do semáforo fechado multiplicava meu tempo. Quanto tempo ainda temos até que não seja mais preciso esperar ? Quando o presente fica para trás? E, afinal de contas, o que é o passado?
Sinal aberto; as perguntas saltaram entre o ir e vir do tráfego, mas o passado ainda estava em mim, sem dar chance às distrações do presente. Vi-me como criança crescida, trocando as travessuras por travessias; revendo com novo olhar capítulos inteiros de mim. Fiz de minha história meu abrigo, um amparo para a memória que também trafega, mas no caminho que vai da cabeça ao coração. E lá se fica.
Seguir é a certeza de que o lugar certo está em nós. Voltar é o encontro com o que há por dentro, de passado, de presente. Talvez seja por isso que a vida tenha tantos vaivéns. Marcas de chegadas, de partidas... em uma dessas curvas, nos damos conta de que não somos a singular identidade por meio da qual nos apresentamos ao mencionarmos nosso nome. Quem sou? Somos tantos num só corpo que a mente se desdobra para acompanhar o coração, enraizado entre paixões e prisões. De nós, de outros.
Hoje, estou curada. De quê mesmo? Quem sabe... Porque nada sabemos. O passado da minha vida estancou os dilemas e saudades que agora já não me apertam mais o peito. Sarou o gosto amargo do (mau) tempo. O medo agora é de que aquela canção do caminho me falte na memória, e a sensação de ter deixado uma travessia para trás se faça ausente na presente memória que é estar verdadeiramente viva - em mim.