Além dos livros, as vivências nos ajudam a perceber quão corriqueiras são as trocas entre as cidades e a situação geográfica na qual estão inscritas. Vou explicar a partir de uma de uma das minhas experiências. Entre 2009 e 2013, tive o prazer de morar em Quixadá, semiárido cearense. Lá no Sertão Central, no polo da região, logo entendi a cidade via suas interações com o rural e com os condicionantes naturais.
O primeiro retrato da interação cidade-história-sertão, por mim captado, foi o comércio de animais vivos e abatidos. No bairro Putiú, a feira semanal é claro resquício dos tempos onde a pecuária era a principal riqueza daquele território. É um ambiente predominantemente masculino, onde dezenas de criadores e compradores, de várias partes do estado, encontram-se para negociar bovinos, caprinos, suínos... Ao final da feira, passam nas ruas os caminhões apinhados de bois, vacas e carneiros a nos lembrar das fazendas da região.
No centro urbano, o mercado municipal é o reflexo da variedade animal. Lembro-me bem do frenesi logo bem cedo, até antes do raiar do sol, entre açougueiro e clientes. Ao pendurar os diferentes cortes, o cheiro de carne fresca espalhava-se por todo o ambiente. Ao mesmo tempo, os clientes logo chegavam, e as facas amoladas repartiam os pedidos. Dentro e fora do mercado, via nas banquinhas grandes peças de queijo amareladas. Circulando por entre os corredores, crianças ofereciam saquinhos com verduras e temperos.
Do lado de fora, notava outros a debulhar o feijão e vender grandes espigas de milho verde. Tudo isso lembrava-me dos pequenos produtores familiares espalhados pelos sítios, distritos e zonas rurais nos arredores da terra da galinha choca. Nesses aspectos do cotidiano, ruralidades e urbanidades chocavam-se e, mutuamente, produziam a alma da cidade.
O segundo destaque vai para a ecologia regional. Essa salta aos olhos! Como não poderia ser diferente em contexto semiárido, a relação com a água é um capítulo curioso para a cidade. À época, face a intermitência no fornecimento de água potável, uma boa residência era aquela com grandes reservatórios para água. Iniciado no século XIX, o velho Cedro não é mais o responsável pelo abastecimento urbano. Isso se resolveu, tempos depois, com a finalização da adutora vinda da barragem Pedras Brancas.
As águas saltavam à paisagem urbana com outro personagem pitoresco, o carroceiro vendedor de água. Ele complementava o fornecimento oficial de “água portável”, sobretudo, para os menos potentados matarem a sede e cozinharem. Pelas manhãs, lá estavam, espécies de barris de madeira ou recipientes de plásticos eram puxados por burros. E os vendedores gritavam: “corre dona menina! Quantas latas d’água vai querer?”.
Nos estudos urbanos e regionais, há uma máxima bem conhecida: a cidade reflete sua região. Essa é uma premissa empírica e lógica, posto remeter ao espaço urbano na sua condição de centralidade e polo de atração.
Em miúdos, aponta para o modelo de organização do território onde o assentamento urbano absorve os recursos do campo e do seu entorno. Simultaneamente, esse intercâmbio é capaz de influenciar a história das cidades e deixar marcas em seu padrão arquitetônico, em sua dinâmica econômica e cultural, em sua interação com os recursos naturais, e em tantas outras situações.
Aqui poderia continuar narrando outras tantas particularidades do urbano sertanejo, como o estacionamento para carroças no centro da cidade. A relação campo-cidade é regra, mas em alguns espaços essas expressões são mais latentes e marcam o cotidiano. No Sertão Central cearense é assim!
*Esse texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor.