Sofia de Matos, de 14 anos, é aluna do 9º ano da Escola Municipal de Ensino Infantil e Fundamental (EMEIF) Angélica Gurgel, na Messejana. Moradora da Paupina, ela utiliza pelo menos duas vezes ao dia o transporte público para ir para o local e evidencia que, por diversas vezes, o orçamento familiar precisava ser sacrificado para contemplar o pagamento das passagens na Capital.
Ela não está sozinha. Assim como Sofia, milhares de jovens de baixa renda enfrentam o desafio econômico para o deslocamento diário até à escola. Em vigor desde a última segunda-feira (13), o Passe Livre Estudantil em Fortaleza garante que os estudantes com carteirinha estudantil da capital cearense tenham gratuidade nos dias úteis.
A novidade, bastante comemorada pelos alunos tanto da rede pública quanto privada, transforma a realidade com a qual diversos estudantes de baixa renda tinham que passar diariamente. Além de ajudar a combater a evasão escolar, reduz a desigualdade econômica que ainda afeta boa parte da população.
Sempre tinha aquela conversa de domingo: Será que tem o dinheiro na passagem? Será que não tem? A gente ficava sempre nessa preocupação. Quando minha avó tinha, ela me dava, quando a minha mãe tinha, a gente colocava [créditos no cartão do Passe Livre]. Era sempre de tirar de algum cantinho, de alguma economia para eu poder me locomover para a escola.
O relato de Sofia é corroborado pela mãe, a recepcionista Camila de Matos. A menina de 14 anos mora com ela e a avó, mas parte sobretudo da mãe o dinheiro para custear despesas básicas do dia a dia, como as passagens.
“Como sou só eu, acabava comprometendo um pouco a parte financeira. Ela vai e volta da escola todos os dias [de transporte público] e era o mínimo que a gente tinha que fazer para recarregar a carteira dela. Ela sempre reclamava quando estava acabando, e eu falava que ia dar um jeito de pedir emprestado”, relembra.
A situação familiar pela qual Sofia passava era uma realidade constante no cotidiano de diversos alunos de Fortaleza. É o que explica Gabriel Nepomuceno, de 18 anos, estudante do curso técnico de Segurança do Trabalho no Instituto Federal do Ceará (IFCE) e presidente da União Estudantil de Fortaleza (Unefort).
“Era uma preocupação com a questão do gasto mesmo, porque enfim o orçamento familiar é bem complicado muitas das vezes. É um alívio nesse sentido, de depender menos da questão do orçamento da família para conseguir chegar até a escola e tudo mais”, pondera.
REIVINDICAÇÃO ANTIGA
Na sanção do Passe Livre no último dia 9 de novembro, o prefeito José Sarto esteve reunido com diversas entidades estudantis da capital cearense. A reivindicação pelo Passe Livre era um desejo antigo da militância do movimento, e defendida por especialistas em políticas públicas.
O movimento estudantil trata [do assunto] há bastante tempo aqui em Fortaleza, desde a década de 1980. (…) A gente reconhece como passe livre o ter duas passagens e de ida e volta da escola. Essa política pública vem com certeza facilitar o acesso à escola para as famílias em que os filhos estudam longe de casa, mas também para essa juventude que mora no seu próprio bairro, que estuda na sua escola e é também uma forma de garantir muito além do acesso à educação dentro da escola.
O estudante do 4º semestre de Ciências Sociais da Universidade Estadual do Ceará (Uece) Eron Prado, de 20 anos, defende que o uso do dinheiro antes destinado às passagens seja investido dentro da própria instituição pelos alunos, seja em materiais para capacitação ou em alimentação e outras despesas.
“As pessoas vão poupar uma renda para colocar em outra coisa, que é lanche, xerox, qualquer outro meio que a pessoa vai gastar com isso. Termina que você coloca o dinheiro em coisas locais, são coisas que a gente tem no nosso dia a dia que a gente termina poupando por ter que investir nas passagens”, enfatiza.
Tem também o debate sobre o acesso à cidade. Muita gente não tinha acesso para ir para aparelhos culturais. Moro na Messejana e, para ir para o Centro, tenho sempre que pegar dois ônibus, no mínimo, então é sempre muito desgastante. A gente tem o benefício da integração, o que termina facilitando um pouco, mas ser isento de pagar facilita o acesso a esses espaços para a galera que não tem recursos.
Quando o Passe Livre Estudantil era tratado em Fortaleza, o aluno da Uece recorda que os discentes tiveram receio de que outros benefícios, como o Bilhete Único e a meia-passagem, fossem retirados, o que não aconteceu.
“Com a garantia de que o passe livre não afetaria isso, a gente se tranquilizou um pouco, tem essa perspectiva de que seja um avanço. Foi a primeira capital capaz de implementar algo parecido, isso é um avanço. Com muita reivindicação ainda, que a gente consiga avançar nos debates sobre ter realmente o passe livre para o estudante não ter que pagar para ter que usar o transporte público”, projeta.
NOVAS PERSPECTIVAS E AUMENTO REAL DA RENDA
Até novembro de 2015, o valor da meia correspondia a 50% da cifra da inteira. Desde então, com os sucessivos aumentos da passagem, a elevação da tarifa estudantil sempre teve menor alta, até chegar aos 33% da inteira de 2023. Atualmente, o preço está em R$ 1,50, frente aos R$ 4,50.
Além disso, outras políticas no transporte público de Fortaleza se diferenciavam pelos diferentes preços praticados. Como a meia-passagem ficou mais barata do que era anteriormente (de R$ 1,80 para R$ 1,50), esse preço ficou fixado, independente do dia e do horário em que o estudante utilizasse a carteirinha.
- Bilhete Único: em vigor desde 2013, garante aos usuários pegar quantos ônibus quiser pagando apenas uma passagem durante um período de duas horas;
- Hora Social: em dias úteis, das 9h às 11h e das 14h às 16h, traz preço reduzido da tarifa aos passageiros.
- Tarifa Social: garante passagem mais barata aos usuários. Válida aos domingos, 13 de abril (aniversário de Fortaleza) e 31 de dezembro.
Tanto na Hora Social quanto na Tarifa Social, o preço da inteira é de R$ 3,90. No caso das estudantes, apesar de a meia-passagem ser válida durante todo o ano, inclusive nas férias, permanecia a reivindicação para a gratuidade no transporte público.
Além do combate à evasão escolar, a redistribuição de renda era uma das reivindicações de entidades estudantis e de responsáveis, como explica Camila de Matos. Com o dinheiro anteriormente dado à Sofia para as passagens, a recepcionista pretende utilizá-lo em outras aplicações.
Ter conseguido passe livre já foi uma grande conquista, é algo que realmente já era para ter acontecido há muito tempo, até por conta mesmo da carência de muitos alunos que têm famílias que não têm condições de arcar com a passagem. Fiquei muito feliz, não só por ela, mas todo mundo, e principalmente por ver que a minha filha fez parte da luta para conseguir o passe livre.
A fala de Camila é alicerçada no peso que os transportes têm sobre o orçamento familiar e a inflação, de acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Em outubro, o Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) ficou em -0,06% em Fortaleza. Apesar disso, o setor de transportes continua sendo o segundo que mais pesa mensalmente na inflação, atrás apenas da alimentação.
No sentido do orçamento familiar, o Passe Livre traz um impacto significativo. Considerando um mês com média de 22 dias letivos, o estudante gastava R$ 66 em Fortaleza apenas para ir e voltar da escola, ou seja, duas passagens diárias. Para famílias com renda de um salário mínimo (R$ 1.320), isso significa 5% de toda a despesa mensal. Para famílias com mais de um estudante, o impacto é ainda maior.
Para Rafael Calábria, coordenador de mobilidade urbana do Instituto de Defesa do Consumidor (Idec), o Passe Livre é uma ferramenta eficaz de garantir o acesso à educação e também outros serviços, movimentando dessa forma a economia local.
“Tende a melhorar a evasão, rompe o ciclo da pobreza por garantir o acesso à educação. (...) Pode ter um benefício social porque a educação é uma porta de acesso a outros benefícios. É um tema absolutamente justificável e importante. Tem questões de que reduz a evasão da saúde, das consultas marcadas, reduz a evasão da escola, aumenta a arrecadação do ISS porque com tarifa zero, a população consome mais”, avalia.
Essa é a porcentagem do salário mínimo gasta com passagens estudantis antes do Passe Livre em Fortaleza (R$ 66).
COMO FUNCIONA
Para utilizar o benefício na capital cearense, o único pré-requisito é ser o dono da carteirinha utilizada em ônibus ou topiques. Caso o estudante ultrapasse as duas passagens diárias em dias úteis, ele continua pagando R$ 1,50, com direito a integração. O benefício não é válido aos sábados, domingos, feriados e férias, e o sistema das carteirinhas será feito de tal forma que só será liberada a gratuidade em dias de aulas.
Do ponto de vista econômico, o impacto será de R$ 2,3 milhões ao mês nas contas da Prefeitura de Fortaleza, totalizando R$ 23,1 milhões ao longo de dez meses de duração (o Passe Livre Estudantil não será válido durante os períodos de férias escolares, comumente em julho ou em janeiro, mas a meia-passagem, sim).
O passe livre estudantil foi iniciativa de um grupo de trabalho da Secretaria de Conservação de Serviços Públicos (SCSP) da Prefeitura de Fortaleza, e virou projeto de lei do Poder Executivo comandada pelo próprio prefeito José Sarto.
De acordo com a SCSP, embora a medida do Passe Livre tenha entrado em vigor apenas em novembro deste ano, o estudo foi realizado entre abril de 2022 e março deste ano, com mais de 193 milhões de viagens realizadas no período.
Esse será o impacto no orçamento de Fortaleza ao ano com o Passe Livre Estudantil.
“É uma conquista histórica para todos os estudantes e uma demanda antiga do movimento estudantil. Dada a importância do avanço, ainda durante a sua elaboração, a gestão pública municipal manteve diálogo com os representantes das entidades estudantis. (...) Com o Passe Livre Estudantil, a Prefeitura trabalha para reduzir ainda mais a evasão escolar. É uma ação preventiva, que se soma a outras que nos tornam referência no assunto, como o transporte escolar e os agentes de busca ativa”, declara Isabela Castro, coordenador de mobilidade urbana da SCSP.
A finalidade de arrecadar é justamente promover políticas públicas que beneficiem a população. Uma coisa que eu tenho em mente sempre, é justamente ver o impacto que isso terá na redução das desigualdades sociais e econômicas. Estou convicto de que qualquer coisa que eu faça para promover melhores condições de acesso na área da educação, será muito bem-vindo e recebido pela sociedade, além de, certamente, gerar muitos resultados, é para isso que as pessoas pagam impostos.
“É uma pauta histórica e muito justa do movimento estudantil de Fortaleza e de todo País. A gente acredita que a folga no orçamento das famílias que nós conseguimos dar com essa política pode ser revertida em outros benefícios, é um recurso financeiro que eles podem usar para a cultura, lazer, ou mesmo, na segurança alimentar das famílias. Então, sem dúvida, para as famílias mais carentes, essa economia representa uma boa parcela do orçamento doméstico”, completa.
Fortaleza já constava na lista da Associação Nacional das Empresas de Transportes Urbanos (NTU) como uma dos 31 sistemas do Brasil com isenção total ou parcial (meia-passagem ou outros subsídios) a estudantes.
EXEMPLOS VIZINHOS
Enquanto Fortaleza começa a implementar o Passe Livre Estudantil, cidades da Região Metropolitana (RMF) estão há alguns anos universalizando o acesso gratuito da população ao transporte público.
Somente na RMF, quatro cidades têm isenção total ou parcial da tarifa no sistema municipal de transporte público, para além das gratuidades garantidas em lei federal, como no caso de idosos e pessoas com deficiência: Eusébio, Aquiraz, Caucaia e Maracanaú.
Atrás apenas de Fortaleza no tamanho da população no Estado, Caucaia tem mais de 355 mil habitantes, e há pouco mais de dois anos não tem tarifa no transporte público. É a maior cidade do Brasil a ter isenção na passagem de ônibus para todos os públicos, independente do dia.
Conforme o prefeito da cidade, Vitor Valim, o Bora de Graça, como é chamado o passe livre no município, representa um aumento real de 15% a 36% na renda das famílias caucaienses, além da redução de acidentes relacionados ao trânsito.
“Caucaia se tornou a maior cidade do Brasil a oferecer transporte público 100% gratuito. Este ano o programa completou dois anos. Isso é mais do que um orgulho, é uma política publica efetiva de distribuição de renda”, celebra o prefeito. O gestor municipal ainda traz outros dados referentes ao Bora de Graça:
- Investimento mensal: R$ 3 milhões (R$ 36 milhões/ano);
- 2,46% de todo o orçamento da Prefeitura para 2023;
- Aumento de 440% no número de passageiros nos coletivos da cidade (de 500 mil em agosto de 2021 para 2,2 milhões em outubro deste ano);
- Aumento da frota em 60,4%: de 48 para 77 veículos.
Para Rafael Calábria, exemplos como o de Caucaia podem inspirar Fortaleza a, em um futuro próximo, adotar a universalização do passe livre, principalmente pelas novas metodologias de repasse de dinheiro às empresas de ônibus.
“Muitas cidades do Brasil estão mudando a sua lógica de operação de transportes para remunerar os empresários pelo custo percorrido, e não por passageiro. Se fosse pago pelo quilômetro, a Prefeitura poderia com muito mais tranquilidade liberar o passe livre geral para os estudantes, porque aí não iria gerar remuneração a mais para os empresários. É uma fórmula mais correta de calcular o custo do sistema”, argumenta.
MELHORIAS SINTOMÁTICAS
Cidades que já universalizaram o passe livre podem ser boas amostras de que a isenção tarifária para estudantes pode favorecer o uso do transporte público em Fortaleza, como comenta Rafael Calábria: “Pela lógica do funcionamento do transporte e pelos exemplos das cidades com tarifa zero que aumentam muito o uso, a gente pode afirmar que vai melhorar mesmo a frequência das escolas, e os indicadores decorrentes disso podem melhorar”.
Ricardo Coimbra, economista e integrante do Conselho Regional de Economia do Ceará (Corecon-CE), reitera, do ponto de vista econômico, a importância da isenção para dar ao dinheiro, antes destinado para as passagens, outros destinos dentro dos setores produtivos da cidade.
“Você gera uma potencialidade de aumento de renda indireta para população, ou seja, à medida em que você não tem mais aquele gasto, esse recurso ele vai ser direcionado para a aquisição de outros produtos, muitas vezes na parte alimentar e até mesmo do entretenimento. Gera uma movimentação na atividade econômica extremamente importante como um meio de inserção dos estudantes na mobilidade do município”, dispõe.
“Se eu tenho uma circulação maior desse público mais jovem, tenho a economia voltando a circular, esses jovens voltando a entender o grande setor cultural, o empreendedorismo da cidade e fortalece esses segmentos. Teremos essa juventude levando esse novo olhar e explorando Fortaleza como um todo”, discorre Wandemberg Almeida, economista.
Ele também defende que o dinheiro, antes utilizado pelos estudantes para as passagens, seja agora destinado para aplicação no meio financeiro, sobretudo para alunos de baixa renda, buscando novos horizontes.
“A partir desse pequeno recurso que vai sobrar por mês, pensar em algo que vai poder transformar para que possa empreender onde ele pode transformar essa renda que vai ser guardada inicialmente, pode haver uma multiplicação. É uma transformação desse dinheiro em oportunidade para a juventude periférica”.
De acordo com o prefeito José Sarto, o Passe Livre Estudantil é a primeira etapa de um projeto que demandou um longo estudo e muita reivindicação por parte dos estudantes, e é preciso observar como o programa vai funcionar para depois ser possível pensar em expansão e até mesmo universalização do sistema.
É um momento de celebrar, comemorar e usufruir, utilizar de uma conquista histórica, um passo importante. Pelo que a gente sabe, nenhuma outra capital brasileira concede a gratuidade para os estudantes de forma universal, sem nenhuma condicionante, sem impor nenhum obstáculo para esse acesso. Agora é hora de observar como essa novidade vai impactar o dia-a-dia das pessoas.
COMO FUNCIONA O PASSE LIVRE ESTUDANTIL EM FORTALEZA?
- Duas passagens gratuitas por dia em ônibus e topiques de Fortaleza durante os dias úteis em dias letivos;
- Único pré-requisito é ter carteirinha estudantil de Fortaleza válida;
- Não é preciso cadastro;
- Bilhetes não são cumulativos. Caso o estudante não use as duas passagens que tem direito por dia, o benefício é zerado e retomado no dia seguinte, desde que seja dia útil e letivo, com novas duas passagens;
- A partir da terceira passagem, o estudante passa a pagar meia-passagem (R$ 1,50) mediante apresentação da carteirinha;
- Pode ser usado em todos os deslocamentos de estudantes durante dias úteis em dias letivos;
- A integração das duas horas com apenas uma passagem continua válida. A gratuidade é apontada no leitor, e em um período de duas horas, o estudante pode pegar outros ônibus, também sem custo, integrando as tarifas;
- Transporte escolar continua válido para estudantes que têm direito ao benefício.