O cenário de crise econômica estremeceu com mais força o Nordeste. A Região, tradicionalmente uma das mais frágeis do País, viu mais uma vez o receio do retorno das profundas desigualdades sociais nos últimos anos. No entanto, para a doutora em Economia Pública e Organização do Território e sócia da Ceplan Consultoria, a economista pernambucana Tania Bacelar, o Ceará desperta nos outros estados a capacidade de pensar no futuro e tornar realidade políticas públicas de incentivo à economia, políticas transversais e de interação entre Governo e sociedade. “O Ceará é um dos estados que nos tem estimulado a pensar no futuro”, diz.
Na entrevista a seguir, Tania conversa sobre as alternativas de recolocar o Nordeste nos trilhos do crescimento - caminhos estes que precisam estar descolados das heranças do passado – e sobre as potencialidades latentes da Região.
Como o Ceará pode aproveitar esse momento de arrefecimento econômico e tornar útil o Plano Regional de Desenvolvimento do Nordeste? Que diferenciais o Estado tem que são essenciais para melhorar a nossa performance na economia e a redução das desigualdades sociais?
O Ceará é um dos estados que nos tem estimulado a pensar o futuro. Fez um investimento estratégico em educação fundamental e hoje serve de referência para o Brasil. Avança agora para o ensino médio e soube aproveitar o momento recente de expansão e interiorização da educação superior. Vem investindo há tempo na gestão da água, tema no qual também é referência no Brasil atual. Foi pioneiro na valorização da infraestrutura de fibra ótica, tanto que o novo plano regional – Plano Regional de Desenvolvimento do Nordeste (PRDNE) - propõe um “cinturão digital do Nordeste” como ampliação do “Cinturão digital do Ceará”.
Constrói um plano estratégico – o Ceará 2050 – concebido em diálogo entre vários agentes sociais e previsto para ser implementado com base em modelo de gestão compartilhada (e regionalizada). Aliás é um Estado onde o ambiente de interação Governo x setor empresarial x academia tem se ampliado. Tem investido na articulação internacional e tem um povo empreendedor.
Tem sabido construir políticas com a marca da transversalidade (como a de Turismo e a de promoção da Economia Criativa). Apesar das grandes desigualdades sociais e da forte concentração no entorno de Fortaleza, vem de uma fase na qual estes dois problemas se atenuaram.
No início da década de 2010, o Nordeste despontava como uma das regiões mais promissoras. Com a recessão, a gente percebeu uma desaceleração do ritmo de crescimento. Qual a sua avaliação disso?
Na primeira década do século XXI, o contexto econômico mundial (em especial, preços das commodities em alta) abriu janela de oportunidade ao Brasil, que associou crescimento econômico a avanços nas políticas sociais (outra janela, essa aberta pela orientação social-democrata da Constituição Federal de 1988).
Políticas públicas nacionais (política de investimento, dentre os quais destaco os feitos em educação superior, e políticas sociais, ao lado de políticas de renda - em particular a de aumento significativo do salário mínimo - , que estimularam o consumo das famílias favoreceram o Nordeste.
A região experimentou dinamismo diferenciado e melhorou seus indicadores sociais. A dinâmica da economia chegou às cidades médias nordestinas, uma novidade muito positiva, em meu entender. O Nordeste rural também mudou para melhor. A mudança de cenário se deu mundialmente (sobretudo pós-crise financeira de 2008-09). O impacto deste novo contexto deixou o Brasil perplexo, em particular o Governo Dilma, sem conseguir se reposicionar.
O Nordeste continuava vivenciando os desdobramentos favoráveis da fase anterior, mas as dificuldades econômicas brasileiras, interagindo com impactos econômicos da Lava Jato e com uma crise política que se instala com força pós-reeleição de Dilma, levaram o Brasil à recessão de 2015-16, que foi o ponto de inflexão no País e na Região. No Nordeste, em especial, a face mais perversa da crise se dá no mercado de trabalho. A região volta a exibir taxas de desemprego acima da média nacional.
Pelos desdobramentos deste período, na economia e na política, a retomada será lenta e dolorosa. O País precisa se reposicionar num mundo em mudança profunda e está dominado pela conjuntura, preso a heranças do passado, sem conseguir construir um novo projeto de futuro, enquanto navega num surto liberalizante. Como se fosse viável uma experiência ultraliberal num país socialmente tão desigual.
Que caminhos o Nordeste pode tomar daqui para frente para conseguir entrar novamente na rota de crescimento e redução das desigualdades sociais?
O Brasil e o Nordeste precisam discutir e construir novos caminhos. O País tem que enfrentar novos desafios e sintonizar com as tendências do século XXI, mas continua prisioneiro de heranças pesadas, refém de conjuntura adversa e de uma agenda governamental muito focada na crise fiscal enfrentada via enxugamento do Estado, surpreendentemente em áreas como educação. Mas, no mundo, vive-se os desdobramentos de uma onda profundamente disruptiva, provocada por avanços do conhecimento aplicado a novas tecnologias (destaque para a passagem da era analógica para a digital, da agricultura baseada na química para a impulsionada pela genética e pela biologia, dos avanços e diversificação dos serviços...).
O mercado de trabalho está sendo profundamente reorganizado, a educação e a cultura crescentemente valorizadas, a comunicação entre pessoas e instituições cada vez mais organizada em redes. Vive-se também o agravamento da crise ambiental, que requer novos padrões de relacionamento sociedade x natureza. E, como se não bastasse, a geopolítica sente os impactos da emergência do poder da Ásia, e em especial da China.
No Nordeste, o Fórum dos Governadores está tentando abrir uma pauta de médio e longo prazo, tomar iniciativas portadoras de futuro. Não se organizaram apenas para se diferenciar do Governo Federal, como pensam alguns, mas vinham, há algum tempo, conversando sobre iniciativas inovadoras. Compartilhar, ao invés de competir (como no tempo da “guerra fiscal”), por exemplo, é uma novidade muito interessante.
A valorização do compartilhamento é uma dessas tendências que está em curso. Com ela, muda não só o modo de entender oferta e demanda, mas muda a relação dos consumidores com os bens materiais e com o acesso a serviços. Valoriza-se, crescentemente, o acesso em lugar da posse, a colaboração ao invés da competição.
Viabilizam ganhos de escala para reduzir preços. A agenda do Fórum dos Governadores e do Consórcio a ele relacionado está em detalhamento, mas aponta para o futuro. Os estados se propõem realizar compras em conjunto, além de se articular e trocar experiências para promover investimentos em Educação, Ciência, Tecnologia e Inovação, Energias limpas e renováveis, Infraestrutura Digital, além de ações conjuntas em Saúde e Segurança Pública e reforço a políticas sociais. Abraçaram também a agenda ambiental.
A Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste (Sudene) tem discutido com intensidade o PRDNE, inclusive com a sua participação. A senhora acredita que esse plano pode trazer de volta ou até impulsionar o “boom” da primeira década do século XXI?
O objetivo não é o de estimular um “boom”, mas o de reorientar o debate sobre o desenvolvimento regional. Por enquanto, o PRDNE está ainda mais próximo de uma estratégia, do que de um Plano de Desenvolvimento detalhado. Mas pode ajudar a construir uma nova agenda para a Região. Enquanto o Brasil se acha mergulhado em conjuntura adversa, o Nordeste propõe, como variável estratégica, a inovação.
O PDRNE parte da constatação da profundidade das mudanças que se inscrevem neste novo século. Busca escapar da velha postura de lamentação, do “Nordeste coitadinho” que perdeu o bonde da indústria do século XX - quando agora o próprio País perdeu o bonde da indústria 4.0. O PDRNE optou por priorizar a identificação de potencialidades latentes que podem mudar a realidade regional e incorporar as pessoas nessa trajetória.
Na era das energias limpas e renováveis, por exemplo, o Nordeste é endereço privilegiado da energia eólica e solar. Em tempos de economia criativa, o potencial cultural do Nordeste é inegável - nosso cinema está brilhando nos festivais mundiais -, num mundo onde o consumidor quer alimentos saudáveis, a diversificada produção familiar nordestina impulsiona as “feirinhas agroecológicas” e a fruticultura reafirma seu rico potencial. Os polos de TIC (Tecnologia da Informação e Comunicação) que foram construídos nos anos recentes podem ajudar a transição para a sociedade da era digital.
A proposta do PRDNE parte da visão de que no centro das mudanças que estão em curso, uma variável estratégica é a produção, aplicação e disseminação de conhecimentos, o que faz os investimentos em Educação, Ciência, Tecnologia e Inovação serem considerados centrais. E trata a inovação numa concepção ampla, que vai da promoção de tecnologias de ponta até a “inovação frugal” e a inovação inclusiva. O novo plano regional aposta no avanço do movimento de interiorização ao propor estratégia territorial centrada na rede das chamadas “cidades intermediárias” e em novas relações rural-urbano.
O PRDNE propõe também o debate sobre novos modelos de financiamento do desenvolvimento para o Nordeste, ressaltando que os atuais se mostram insuficientes. Nesse sentido, é necessário que novos arranjos e instrumentos levem em consideração características regionais e apresentem formas diferenciadas que viabilizem projetos e iniciativas desenhadas no PRDNE. Modelos e instrumentos inovadores de parceria público-privada, por exemplo, precisam ser pensados e testados no Nordeste. É uma agenda ampla e desafiadora.
De que forma o Banco do Nordeste (BNB) pode participar desse processo? A senhora acredita que o BNB está enfraquecido pelo Governo Federal?
O BNB é uma conquista do Nordeste e tem uma folha de serviços relevantes. Mas o Governo Federal atual não valoriza bancos públicos e têm surgido propostas, no mínimo, polêmicas sobre o FNE (Fundo Constitucional de Financiamento do Nordeste), principal instrumento de atuação do BNB.
Há planos do Governo Federal de retirar recursos do FNE para o Ministério da Educação. Quais os prejuízos dessa medida para o Nordeste?
O FNE tem como orientação estratégica financiar a expansão e melhoria da atividade produtiva e da infraestrutura regional. Foi pensado para promover mudanças de longo prazo. Se capitalizou ao longo do tempo e hoje dispõe de recursos nada desprezíveis. Não pode ser tragado pela crise fiscal. A reforma tributária - que vai fazer desaparecer o IPI (Imposto sobre Produtos Industrializados) - uma de suas fontes de recursos - já é uma ameaça relevante. Mas há outras. Fala-se em usar parte do fluxo adicional anual dos Fundos Constitucionais para cobrir o déficit do Fundeb (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação) - que é um fundo nacional. O Fundeb é muito estratégico mas seria o Nordeste, Norte e Centro Oeste financiando as regiões de mais alto índice educacional. Será que não haveria outra fonte?
No tema infraestrutura, qual a sua avaliação sobre o programa de concessões dos aeroportos do NE?
Considero que este é um dos segmentos onde a concessão se aplica bem e os resultados têm sido bons. Como houve novas iniciativas recentes, inclusive no NE - aeroporto do Recife, Maceió, João Pessoa, Aracaju, Juazeiro do Norte e Campina Grande - vamos acompanhar os resultados. A conexão aérea do NE com o mundo, com o resto do País e dentro da própria região vem melhorando bastante.
A Transposição do São Francisco ainda é importante? Ou existem outras saídas para a questão do acesso à água?
A Transposição precisa ser complementada e a gestão da água bem equacionada - estima-se que o custo de energia e de administração será de R$ 800 milhões por ano. Foi um investimento estratégico para o Nordeste oriental e pode vir a ser um eixo de desenvolvimento para este território. O PRDNE propõe o “barateamento dos custos de energia através, por exemplo, da construção ao longo dos canais de parques eólicos e de energia solar”. Outro desafio importante é o da revitalização do Rio São Francisco, através da sua despoluição, especialmente de serviços de saneamento básico nas cidades ribeirinhas e do reflorestamento de suas margens.
Sobre o modelo de industrialização, qual a avaliação da senhora sobre o atual?
A indústria continua sendo importante, mas ela mudou muito no mundo. Os desafios se multiplicaram para o País e para o Nordeste. Essa é uma estratégia que precisa ser revisitada. O Ceará pode ajudar no debate. Abriga um ambiente favorável, tendo uma Federação da Indústria ativa e antenada nas mudanças mundiais, mas sem descolar das especificidades regionais. O “Observatório da Indústria”, do Sistema Fiec, é uma iniciativa cearense que se tornou benchmarking para outros estados.
O que deve ser feito para resolver a questão da pobreza do Nordeste? Que políticas públicas precisam ser discutidas e implementadas imediatamente?
Este continua sendo o desafio principal do Brasil e do Nordeste. E o mercado não dá conta dele. As políticas públicas são essenciais. Muitos avanços conceituais e práticos foram realizados sob o estímulo da Constituição de 1988 e da capacidade de mobilização da inteligência nacional e da sociedade civil brasileira e nordestina. O aprendizado – com acertos e erros- ficou. Precisamos continuar avançando.
SAIBA MAIS
O que é o PRDNE
O Plano Regional de Desenvolvimento do Nordeste (PRDNE) é um instrumento que apresenta novos horizontes para a área de atuação da Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste (Sudene). Os objetivos são valorizar o que a região tem de positivo para a economia do século XXI e enfrentar as heranças acumuladas no século XX.
Dimensões
Plano lança olhares para superar desafios a partir de cinco dimensões: meio ambiente (incluindo recursos hídricos); ciência, tecnologia e inovação; economia; sociedade e; instituições.
Eixos
O PRDNE se organiza em seis eixos estratégicos que se desdobram através de vários programas e projetos estruturadores: segurança hídrica e conservação ambiental; desenvolvimento das capacidades humanas; dinamização e diversificação produtiva; inovação; desenvolvimento social e desenvolvimento institucional são as propostas da Sudene para orientar as iniciativas a serem priorizadas para a Região.