Prédio da Maraponga: nova tragédia reaviva trauma de moradores

Após cinco meses do desabamento do Edifício Benedito Cunha, ex-inquilinos não foram indenizados e ainda seguem amargando danos materiais e psicológicos; primeira audiência de conciliação está marcada para novembro

"Quando fiquei sabendo, tava no trabalho e só quis vir pra casa ficar com a minha filha. É nessa hora que vemos o quanto a ferida ainda tá aberta". A fala é de Joice Elias, 32, que morava no segundo andar do Edifício Benedito Cunha, na Maraponga, quando ele desabou parcialmente e foi demolido, em junho deste ano, felizmente sem nenhuma vítima ferida ou morta. O depoimento é sintomático, porém para lembrar de que não só os danos materiais permanecem, mas principalmente os psicológicos - bagunçados após a tragédia do Edifício Andrea.

Pelo menos, 14 condôminos ainda não foram indenizados nem assistidos material ou psicologicamente, e uma audiência de conciliação com os proprietários do antigo imóvel - os irmãos Arisol e Solimar Parente Portela, indiciados no dia 1º de outubro pela Polícia Civil do Ceará - está marcada para novembro. É a próxima etapa do processo judicial por meio do qual os ex-moradores pedem indenização de R$ 2 milhões. A reportagem tentou contato com o advogado dos locadores, por telefone, mas não teve as ligações atendidas até o fechamento desta edição.

Joice, que vive em outro apartamento no mesmo bairro, alugado por conta própria, está entre os que esperam a decisão. "Estamos reconstruindo nossa vida aos poucos, terminando de pagar uma coisa e comprando outra. Desde junho, foi tudo muito intenso. É um desgaste muito grande, físico e emocional", relata.

Um dos picos do abalo mental se deu na manhã da última terça-feira (15), quando a notícia sobre o desabamento do Edifício Andrea se espalhou. "Veio tudo de novo, as memórias, o choro, alguns de nós passando mal. Apesar de já ser o quarto mês desde que perdemos tudo, a gente percebe como tá traumatizada. Tem gente que está morando em apartamento e disse que vai sair, porque não aguenta morar com o medo. Vai levar um bom tempo pra gente dizer que superou", lamenta Joice.

Apoio

A nutricionista Emanuelle Lima, 29, era outra moradora do prédio da Maraponga - e reviveu as memórias, nesta semana. "Passei o dia inteiro tremendo, chorando. Ontem, fui ao Centro com minha mãe, algumas pessoas soltaram fogos e foi horrível. Pensei que outro prédio estivesse caindo e corri para me abrigar em outro lugar. É muito angustiante", descreve Emanuelle, cuja família também aguarda assistência dos proprietários do edifício.

Ela, o esposo e o filho de um ano e seis meses estão reconstruindo um lar com a ajuda de amigos e familiares, após três meses morando na casa de parentes. "Nos mudamos apenas com uma geladeira. Com ajuda, conseguimos comprar um fogão no dia seguinte. Depois, nosso padrinho de casamento fez uma doação de cama e mesa. Eu precisava ter o meu canto, mesmo que tivesse que comer no chão", afirma a nutricionista.

Hoje, dividindo espaço com as angústias, vive a empatia: Emanuelle organiza uma "vaquinha" virtual para arrecadar recursos e ajudar as famílias que perderam tudo, inclusive entes queridos, na tragédia do Andrea. "Quero realmente ajudar esse povo, porque só tô aqui porque também fui ajudada. Sei que roupa e calçado ajudam, mas dinheiro também é necessário", diz. É possível doar por meio da página www.vaka.me/761679.

Assistência

Já os moradores do antigo 401, os irmãos Gilberto e Roberto Patriolino e um amigo deles, Evandro, tiveram de se separar após perderem o apartamento. Depois de quase três meses sem ajuda dos donos do edifício, Gilberto e Evandro alugaram uma casa em Maracanaú, perto do trabalho, já que também perderam o veículo que os levava para a empresa. "É difícil começar tudo do zero, mas não posso me abalar, tenho que me erguer. Aos poucos, estamos tentando comprar os móveis. Temos um fogão, uma geladeira e as redes que dormimos", declara Gilberto.

Junto aos prejuízos materiais, permanece também o amargor do trauma, que se converteu em empatia diante da tragédia recente. "Quando eu vi o que aconteceu no Edifício Andrea, fiquei mal. Nós passamos por uma situação daquele jeito, eu me afeto bastante com todos eles. Foi uma sensação como a de meses atrás, é triste", declara.

Além da indenização obrigatória, os ex-moradores solicitaram ainda subsídios para buscarem auxílio psicológico, o que também não foi atendido pelos antigos locadores. "Nós perdemos tudo, não fomos indenizados em danos morais nem materiais, e tínhamos pedido um acompanhamento que foi negado. Infelizmente, aconteceu outra tragédia, minha namorada relembrou e entrou em pânico. O psicológico não tá bem", afirma outro ex-inquilino, que preferiu não se identificar.

Para a psicóloga Mariana Kolb, estar exposto a eventos traumáticos, de risco à própria vida ou à de terceiros, "são situações extremamente potenciais para que manifestações comportamentais disfuncionais surjam" - para os ex-moradores da Maraponga, o Andrea foi, então, "gatilho intenso". "É como se a lembrança da experiência deles invadisse de forma incontrolável, assim como as mesmas sensações corporais e o mal-estar. É natural que após vivenciarem traumas, as pessoas evitem contato com qualquer coisa que os lembrem", explica.

A profissional destaca que as reações humanas à tragédia são diferentes, mas requerem atenção integral. "Se faz necessário um acompanhamento psicoterápico profissional. Em alguns casos, é necessário o uso de medicação para controlar sintomas. E técnicas de relaxamento e meditação, para aumento do autocontrole. São medidas que podem resgatar a qualidade de vida do sujeito", pontua Mariana, afirmando ainda que "sentimentos de culpa, comportamentos depressivos, ansiedade e alterações do sono" são possíveis reações "que podem durar meses, anos ou uma vida, se não receberem atenção adequada".

Memórias do desabamento do Edifício Benedito Cunha, na Maraponga, em junho, voltaram fortes para ex-moradores após tragédia do Andrea. Psicóloga alerta para necessidade de acompanhamento.

Escombros

Em julho, o entulho resultante da demolição do Edifício Benedito Cunha foi descartado de forma irregular, junto a objetos pessoais dos moradores, em um terreno particular. As empresas responsáveis foram multadas, e os pertences levados a um galpão.

Objetos

Os pertences das vítimas do Edifício Andrea estão sendo divididos entre a Agência de Fiscalização de Fortaleza, assistentes sociais e a Polícia Civil, de acordo com o porte e o valor. A informação é do tenente Romário Fernandes, do Corpo de Bombeiros Militar.