Imagine ter a ideia de modificar geneticamente uma cabra e retirar do leite dela uma substância capaz de curar o câncer. Extrair do látex das plantas o cicatrizante que fecha as feridas da hanseníase. Ou, por sua vez, identificar compostos que amenizam dores faciais antes incuráveis.
Todas essas iniciativas aqui descritas são concretas. Partiram das mentes de estudantes e cientistas da Universidade de Fortaleza e Universidade Federal do Ceará (UFC). Anos de pesquisa são materializados em medicamentos genuinamente cearenses.
As cabras transgênicas são acompanhadas pelos pesquisadores Leonardo Tondello, Kaio Tavares e Saul Gaudêncio, da Unifor. Eles extraem do leite dos animais um anticorpo chamado "anti-VEGF", eficaz para reduzir o tamanho de tumores cancerígenos e inibir a multiplicação deles pelo organismo.
A partir do agente, é elaborado um biofármaco. Trata-se de um medicamento que necessita de algum organismo vivo para ser feito. Ele já foi testado com sucesso em animais e aguarda parcerias para expansão do uso.
"No leite conseguimos alta concentração da substância. Temos um protocolo eficiente de purificação e identificamos que o perfil do anticorpo no leite caprino é semelhante à imunoglobulina G humana, reduzindo chances de rejeição pelo organismo. Atestamos a efetividade do biofármaco em animais. O próximo passo é buscar conexão com parceiros que viabilizem o registro da droga e ela possa ser usada no tratamento oncológico", explica Tondello, professor do curso de Medicina Veterinária e docente do Programa de Pós-Graduação em Ciências Médica da Unifor.
Segundo o pesquisador, o biofármaco testado em camundongos com câncer de pulmão, é eficaz no tratamento de outros tipos de carcinoma que atacam mama, colo retal, rins e ovários. Iniciado em 2010, o projeto é desenvolvido em parceria com o Centro de Biotecnologia y Biomedicina, da Universidade de Concepción (Chile). Outro aporte é da Fortgen Technologies, startup da Universidade de Fortaleza.
"Esse é um estudo bonito, porque mostra como a pesquisa científica pode ser decisiva, e que vale a pena investir nela. O biofármaco foi criado, cresceu e se desenvolveu dentro da pesquisa científica. No âmbito desses medicamentos, o Brasil ainda segue totalmente dependente de produtos e tecnologias estrangeiras, porque muitas vezes se investe na compra de um pacote tecnológico pronto, mas não se aprende a desenvolver. E é isto que estamos fazendo aqui no Ceará", destaca o professor.
Dores
Outra demanda dos laboratórios da Universidade de Fortaleza é encontrar substâncias analgésicas, seja de origem natural ou sintética, para tratamento da dor orofacial. Esta condição é explicada pela professora do Programa de Pós-Graduação em Ciências Médicas e coordenadora do Grupo de Pesquisa de Farmacologia de Produtos Naturais e Sintéticos, Adriana Rolim.
"A dor orofacial é toda dor da cavidade oral ou da face associada a tecidos moles ou mineralizados. Pode ser causada por doenças ou distúrbios das estruturas regionais, disfunção do sistema nervoso ou referida a partir de origem distante da face. Os pacientes portadores de dor orofacial sofrem devido ao desconforto de longa duração causado por ela", pontua a cientista. Ela acrescenta que o tratamento dessa condição é "difícil e controverso, porque a origem diversa da dor requer diferentes abordagens farmacológicas".
Os medicamentos disponíveis atualmente, segundo Adriana, são "frequentemente ineficazes, e os mecanismos nociceptivos (estimulação dos receptores de dor) subjacentes não são bem entendidos". Com o intuito de encontrar alternativas para melhorar a qualidade de vida dos pacientes, o grupo iniciou, há cerca de oito anos, a procura por outros fármacos e o teste de medicamentos que já estão no mercado para outro fim terapêutico.
De acordo com a pesquisadora, foram testados 14 compostos, dos quais quatro já evoluíram para desenvolvimento de formulação farmacêutica e patente. Outros dois estão em processo de solicitação de registro.
Progressos positivos para pacientes, pesquisadores e para a ciência em geral. "O Brasil está entre os dez primeiros países no ranking global de mercados farmacêuticos, mas a dependência de importações de fármacos e medicamentos permanece. As pesquisas de remédios no Ceará promovem aproximação entre a academia e o setor produtivo, contribuindo para o desenvolvimento do Polo Industrial de Saúde do Estado", analisa Adriana.
Professor do Programa de Pós-Graduação em Bioquímica da UFC e líder do grupo de pesquisa Biotecnologia Molecular de Látex Vegetal da UFC, Márcio Ramos acrescenta que a falta de acessibilidade a medicações baratas por parte dos pacientes também é um gargalo. A solução desse dilema é buscada pelas pesquisas universitárias.
Nesse sentido, ele, junto à professora Nylane Alencar, do Núcleo de Pesquisa e Desenvolvimento de Medicamentos (NPDM) da UFC, desenvolveram um remédio à base de látex. O produto é capaz de promover a cicatrização de feridas causadas pela hanseníase e pela diabetes.
"Temos problemas reais na saúde humana. Feridas cuja cicatrização é difícil ou que não acontece espontaneamente. Nestes casos, temos trabalhado nas feridas de hanseníase e no pé diabético, tão grandes e graves que são chamadas de úlceras plantares. Desenvolvemos um tipo de curativo no qual incorporamos o princípio ativo e utilizamos em pacientes atendidos no SUS, nas duas doenças. A maior parte dos pacientes tem uma resposta positiva, alcançam a cicatrização completa", comemora o pesquisador.
Todo o processo entre ideia e aplicação em humanos levou em média 15 anos, segundo Márcio. Cerca de 30 pacientes com pé diabético já foram tratados no Centro de Referência em Dermatologia Dona Libânia, do Governo do Estado, em Fortaleza. A amostra só não é maior porque, como relata o pesquisador, "o paciente é desencantado, pois no SUS não há um tratamento que leve à cicatrização. Então, quando propomos, muitos não aceitam participar, porque estão esgotados de esperança". Após a aplicação do medicamento, porém, o prazo é de 60 dias para o progresso ser avaliado.
Márcio salienta que assim como o fármaco produzido pela UFC, existem medicamentos no mercado que promovem a total cicatrização dessas feridas, "mas são completamente inacessíveis a pessoas com hanseníase, a maioria tão pobre que não tem dinheiro nem para se deslocar pro tratamento", lamenta. É aí, reforça, que é provada a importância de apoiar e dar subsídios às pesquisas.
"Precisamos diagnóstico, compromisso e envolvimento para resolver esses problemas. É uma questão de investimento, de apoio. A universidade desenvolve potenciais e tecnologias, mas não pode ter um encargo de gerar produto. Só conseguimos tratar os pacientes no SUS, por exemplo, porque o medicamento faz parte de uma pesquisa, do contrário não poderíamos, seria proibido. Temos tecnologia, conhecimento e estrutura, falta apoio para os próximos passos. E não vamos para canto nenhum sem pesquisa", sentencia.