É importante iniciar este texto com um lembrete: o dia 8 de março foi gestado no útero da luta, e não da celebração. Quando o Dia Internacional da Mulher foi oficializado pela Organização das Nações Unidas (ONU), em 1970, elas reivindicavam iguais direitos sociais, políticos e econômicos – e não flores.
Em abril de 2020, cinco décadas depois, a mesma ONU tratou de nos alertar: a pandemia tornaria a situação já desigual ainda pior, “afetando as mulheres de preocupações com sua saúde, segurança e renda até responsabilidades adicionais de assistência e maior exposição à violência doméstica”. No Ceará, o cenário se replica.
Ao todo, 40% das mulheres afirmaram que a pandemia e a situação de isolamento social colocaram a sustentação da casa em risco, tendo como dificuldades principais o pagamento de contas básicas ou do aluguel, além do acesso a alimentos e medicamentos, conforme pesquisa da Sempreviva Organização Feminista.
Não só as questões de ordem econômica, como perda de postos de trabalho, mas também as de saúde global atravessam os corpos e mentes femininos. A mudança de rotina, com jornadas triplas e até quádruplas, tem as mulheres, chefes de família ou não, como alvos certeiros.
Sabrina Matos, psicóloga e professora da Universidade de Fortaleza, avalia que quando a “desigualdade descomunal” se aplica em tempos de pandemia, o impacto é maior. “Ainda vivemos numa realidade muito machista, uma lógica patriarcal, e são as mulheres que vão se sobrecarregar com os filhos, as aulas remotas”, exemplifica.
“Muitas alunas minhas disseram que estavam tendo insônia, e que aproveitavam a madrugada para estudar. Mas a insônia é um sintoma do mal estar que a população está passando, e que recai muito mais sobre as mulheres”, analisa a psicóloga.
Outro aspecto estrutural, cuja incidência cresceu durante o isolamento social imposto pela pandemia, é a violência de gênero. “Os índices que temos de feminicídio em março e abril do ano passado aumentaram em 22%, na nossa realidade. Só no ano passado, tivemos 26 mulheres mortas por questões de gênero”, relembra Sabrina.
“Ainda tô viva porque quem me cuida é Deus”
Duas realidades adoecedoras cruzam a rotina da dona de casa Maria Silva* desde que a pandemia chegou em Fortaleza, lá em março de 2020: a falta de saneamento básico e a violência doméstica. Ambas já existiam antes do coronavírus, mas se agravaram com o dia a dia imposto por ele.
>> 90% dos casos de violência contra a mulher durante quarentena aconteceram dentro de casa
Moradora de uma comunidade no bairro Praia do Futuro, na capital cearense, Maria divide com o companheiro um barraco construído na calçada, com materiais reciclados, sem porta nem condição alguma de segurança – seja sanitária, seja contra a violência urbana.
“Não tenho água, vou buscar lá na lagoa, onde o pessoal às vezes faz até necessidade (fisiológica). Pra tomar banho, vou despejando na cabeça, mesmo. Muita gente usa pra beber, mas eu não, faço um esforço e compro, pra não ficar doente”, relata.
O líquido básico e indispensável à saúde em tempos de pandemia é retirado da lagoa e armazenado em garrafas plásticas, até ser usado para asseio do corpo e das panelas. O vai-e-vem de casa ao reservatório para buscar água, há quase um ano, já deixa exaustos o corpo e a mente.
“Fico até com dor nas pernas, por causa disso, e não consigo nem ir pro médico. Meus irmãos é que ainda fazem alguma coisa por mim, porque minha família é grande. Tentam ajudar até ele, mas ele não quer ajuda nem nada com a vida”, relata, referindo-se ao marido com quem vive há quatro décadas.
Foi só nos últimos anos – tempo que Maria já perdeu as contas, assim como da própria idade –, porém, que o companheiro sucumbiu ao alcoolismo, perdendo documentos e até qualquer noção de cuidado com a própria saúde e com a dela.
“Comprei um vidro de álcool, uso máscara. Ele não. Sai, bebe na rua com os outros, volta e deita na rede do jeito que tá. E não posso nem reclamar, pra ele não me agredir”, relembra Maria, cujo apego para cruzar a situação é a fé.
"Eu acredito que não peguei esse vírus e que ainda tô viva porque quem me cuida é o médico dos médicos, minha filha. Quem me cuida é Deus.”
*Nome fictício para preservar a identidade da entrevistada
“Tinha uma hora pra mim, agora só tenho brechas”
Para Rousianne da Silva, 40, por outro lado, o impacto não é estrutural, financeiro ou ligado à violência: mas de rotina. Tendo a organização como premissa no trabalho como bibliotecária numa instituição de ensino superior pública, ela assistiu à mudança completa do dia a dia, com a chegada do coronavírus ao Ceará.
Em março do ano passado, havia só três meses que Rousianne havia retornado, “empolgada”, ao trabalho, após a licença-maternidade para cuidar da primogênita. E a rotina foi, então, revirada de novo. Neste mês, faz um ano que ela “não pisa no serviço”.
“Mulher é muito requisitada. Aquele momento de trabalhar fora é nosso. Não é nem em casa, é lá fora que temos esse momento. E sinto falta. Porque em casa você é solicitada por muito tempo, e agora que sou mãe vi como isso é grande.”
O de mãe, aliás, é só um dos postos que a bibliotecária ocupa, atualmente. “Minha rotina de trabalho é a divisão doméstica, faxineira, mãe, babá, e gerenciar isso. Eu era muito mais cuidadosa, de ir ao médico, ao salão, toda semana fazer minha unha. Eu tinha meu cuidado, minha hora. Agora, minha hora são brechas”, relata a cearense, que precisou dispensar a secretária que a ajudava nas tarefas.
Embora as atividades sejam divididas com o marido, Rousi reconhece que a atribuição de determinadas funções às mulheres, embora as sobrecarreguem, é cristalizada pela sociedade, não importa o quanto se discuta, estude e aprenda sobre isso.
“Meu marido sempre tenta me ajudar. Ajudar não, equilibrar as atividades, pra eu também poder cuidar de mim. Mas a mulher parece que foi criada pra abraçar tudo. A gente é cobrada e criada pra dizer que tem capacidade de ser forte em tudo. Mas tem um momento que você quer ter o direito de se sentir fraca, de não querer fazer algo.”
“A pandemia foi um fardo pesado, mas libertador”
A descoberta sobre o que não queria mais fazer foi o saldo que o período pandêmico no Ceará deixou para Roberta Freitas, 23, que iniciou 2020 como universitária e terminou como streamer (criadora de conteúdo ao vivo na internet), após trancar a matrícula no curso de jornalismo.
Sem segurança sanitária nem demanda para fazer “bicos” como fotógrafa, durante o isolamento social, a jovem encontrou um novo ofício ao aliar os gostos “por games e por aparecer”. Hoje, a renda vem dos seguidores que a assistem por até 12 horas seguidas em uma plataforma de transmissões ao vivo.
“Minha rotina mudou drasticamente. Tranquei a faculdade porque ensino à distância não funciona pra mim. Então, minha mãe me ajudou a comprar um computador melhor, pra eu começar a trabalhar, e tô há 3 meses nisso. Agora que começou a gerar uma grana de verdade”, calcula.
Além de renda para sobreviver em tempos de pandemia, foi no universo das lives onde Roberta encontrou, de graça, uma tríade que não conseguiu no mercado de trabalho convencional: respeito, inclusão e liberdade.
“Sempre procurei estágio na minha área, porque gosto. E minha mãe acompanhou toda essa minha procura por emprego: eu me candidatava a um estágio novo e saía da entrevista mais abatida. Gostavam do meu currículo, mas na entrevista, a ‘mágica’ acontecia, só que não de uma forma encantadora. Só porque eu sou uma mulher trans”, desabafa.
As dificuldades de inserção no mercado somaram-se ao processo de busca por afirmar a própria identidade de gênero e a todas as questões enfrentadas pela sociedade diante de uma pandemia, formando um combo adoecedor – que, dia a dia, live a live, Roberta tenta desconstruir.
“Lidar com faculdade, mercado de trabalho, busca de emprego eram cargas que eu ia colocando sobre esse processo, que é a terapia hormonal. E precisei lidar sozinha, com o isolamento. Até a psicóloga que eu usava era da universidade, então, trancando, fui privada de tudo. A pandemia foi um fardo muito pesado – mas, ao mesmo tempo, libertador."