Pandemia acentua dificuldades e ONGs precisam se adaptar para resistir em Fortaleza

Dívidas, interrupção de ações e tentativas de arrecadação através de lives marcaram o ano de 2020 das organizações do Terceiro Setor na Capital. Planos para ampliação de trabalhos foram adiados para 2021.

Há anos, Renata Fernandes, moradora de Fortaleza, já sabia qual era sua missão na vida, muito antes da pandemia. O período de isolamento lhe rendeu mais tempo ao lado do filho George, de 7 anos, e, com isso, uma lembrança constante de seu propósito como diretora administrativa da Associação Fortaleza Azul (FAZ), que atua na defesa e proteção de pessoas com autismo. Essa, como tantas outras Organizações Não Governamentais (ONGs) da Capital, também atravessa a crise sanitária em meio a dificuldades, vendo se esgotarem doações e sem a possibilidade de atuar de forma presencial.

A fala de Renata casa com o resultado de uma pesquisa que aponta que, durante a pandemia, seis a cada 10 ONGs deixaram de atender ou oferecer algum serviço. Conforme a pesquisa, realizada pelo Datafolha em parceria com a Ambev, as entidades do Terceiro Setor afirmam que terão dificuldades para se manter após esse período.

Para o gerente de Impacto Social da Ambev, Carlos Pignatari, os desafios vividos pelas organizações no Ceará refletem um cenário já comum ao Nordeste. De acordo com ele, a pesquisa aponta que o problema ocorreu não só aqui, como em todo o território nacional. A dificuldade com recursos financeiros, por exemplo, já era observada pela maioria dos gestores de ONGs e se agravou com a chegada da pandemia.

Na FAZ, o trabalho é para oferecer suporte a pessoas que, assim como o pequeno George, foram diagnosticadas com o Transtorno do Espectro Autista (TEA), bem como para seus familiares. As principais atividades tinham como foco orientar, tirar dúvidas, oferecer apoio judicial para a busca de direitos e promover espaços de convivência e lazer para as 300 famílias cadastradas. Nos últimos meses, porém, surgiram as limitações.

"Nossos encontros, nossos projetos, praticamente não existiu nenhum, a não ser o da doação de cestas básicas, que nós conseguimos ajudar muita gente, mas com muita dificuldade. Não encontramos facilidade nas doações, tivemos que bater de porta em porta pra conseguir", conta Renata.

A ação ocorreu em maio, e, além dos alimentos, foram distribuídos materiais de higiene, máscaras e brinquedos sensoriais para crianças com autismo.

A diretora explica que, nos primeiros meses da pandemia, as doações financeiras à Associação foram mantidas. A situação mudou, porém, quando o fluxo de pessoas nas ruas passou a aumentar. "As pessoas pararam de procurar, de querer ajudar. Do que a gente recebia por mês de doação espontânea, praticamente zerou depois do fim do lockdown", lamenta.

"Esse ano não conseguimos realizar o nosso bazar por conta da pandemia, e nem vamos mais. A gente aceita doação de tudo. E sempre que temos a possibilidade, como a gente não tem uma sede física que comporte muitas pessoas, a gente redireciona exatamente para famílias e outras entidades menores, que também lidem com pessoas com autismo", lembra.

A ampliação do espaço da FAZ também estava entre os planos para este ano. Segundo Renata, a diretoria pretende alugar uma casa com área suficiente para que sejam ofertados acolhimento, terapias e atendimento para pais e mães de pessoas com TEA. A ideia agora é concretizar essa expansão da ONG em 2021.

A diretora também carrega para o próximo ano o senso de propósito que compartilha com os demais membros administradores da Associação. "A partir do momento em que nos descobrimos mães ou pais de uma pessoa com deficiência, passamos a olhar para o próximo de uma forma mais carinhosa, menos preconceituosa. É isso que nos dá força. Saber que se nós sofremos com isso, temos que lutar para que outras pessoas não sofram. A gente tem que se esforçar pra continuar esse trabalho e não deixar a nossa causa ser em vão".

Persistência

Para Gisele Oliveira, administradora da Associação Protetora dos Animais para Tratamento e Adoção (Apata), não houve necessidade de buscar uma motivação para continuar o trabalho durante a pandemia, porque parar o trabalho não era nem mesmo uma opção. "Isso não passou pela minha cabeça. Porque a necessidade dos animais não tem pausa, muito pelo contrário".

Já se vão mais de 16 anos de uma rotina constante na ONG que se propõe a tratar e preparar animais abandonados para a adoção, além de conscientizar pessoas sobre os maus tratos e como denunciá-los. Foi na pandemia, contudo, que problemas já conhecidos passaram a se intensificar.

"Antes, já era difícil conseguir novos voluntários porque faltava tempo para prepará-los. Trabalho fora em um pet shop, tenho cerca de 40 animais sob os meus cuidados, então sempre existiu uma sobrecarga. Para recrutar esses voluntários, como se trata de uma parte administrativa, tem que ser feito por mim. E eu sou do grupo de risco, tenho asma, então não tenho como me expor assim durante a pandemia", diz a administradora.

Assim como na FAZ, a situação financeira da Apata também se agravou. Não somente a quantidade de doações recebidas diminui, mas a de adoções de animais também. "Tivemos alguns animais devolvidos de adoção, porque tutores faleceram devido à Covid, ou foram parar na UTI e os filhos não quiseram se responsabilizar pelos animais", lamenta Gisele.

Para manter o custeio das despesas de seus animais, foi necessário um sacrifício por parte dos membros da Apata. A administradora viu se multiplicarem as dívidas já existentes em clínicas veterinárias e em casas de ração.

"A gente sempre tira do nosso bolso pra complementar o que os animais necessitam. Tivemos que nos endividar mais, contar com a boa vontade dos profissionais veterinários, que deixam a gente 'pendurar' as contas", relata. "Essa situação sempre existiu, mas se intensificou durante a pandemia", enfatiza.

Novos desafios

O cenário pandêmico exigiu criatividade dos empresários e também dos empreendedores sociais. Para tentar contornar a escassez financeira e arrecadar doações durante a pandemia, a Associação de Moradores do Conjunto Tancredo Neves (AMCTN) utilizou um recurso até então inédito para a ONG: promover lives com temas de cultura e diálogo em suas redes sociais.

O grupo atua no bairro Jardim das Oliveiras há 30 anos, e atende cerca de 600 pessoas da comunidade e adjacências. A presidente da AMCTN, Eleni Oliveira, conta que todo o trabalho se volta à assistência social, e, embora seja naturalmente desafiador, foi preciso se reinventar para atravessar os meses em crise sanitária em Fortaleza.

"Fizemos live de quadrilha junina, de conversas... Na ONG a gente promovia vários eventos voltados para cultura ao longo do ano, tipo pré-Carnaval, Carnaval e de pastoril, então tentamos dar continuidade de outra forma", conta ela. Para não gerar aglomerações, o trabalho de entregar cestas básicas e demais doações durante a pandemia foi feito em rodízio entre os membros da ONG para conduzir as visitas em domicílio na comunidade. Tudo para que essas mãos que ajudam pudessem chegar àqueles que mais precisam. E na pandemia, toda ajuda foi mais que necessária.

Abismo social 'desnudado'

Luciana Quixadá
Psicóloga, professora da Uece e integrante do Movimento Cada Vida Importa

Quando nos deparamos, inicialmente, com essa realidade da pandemia houve um movimento curioso: se por um lado nos voltamos para nós mesmos, trazendo nossas vivências "de fora" para nossos lares, por outro lado, houve uma grande sensibilização, um forte olhar sobre aqueles que não teriam as mesmas condições de proteção. Surgiram assim diversas ações coletivas de promoção de cuidado junto aos mais desamparados pelo tecido social. O que foi um movimento muito interessante e necessário.

Com o passar dos meses, fomos percebendo que essa realidade não seria passageira a curto prazo e, o que parecia ser feito como algo emergencial aos grupos de pessoas desassistidas, foi sendo visto como algo que não poderia ser sanado com ações pontuais e imediatas da sociedade civil. O que podemos ver a partir disso é que a pandemia desnudou para alguns o abismo social que se instaura nesse país há séculos.

Muitas pessoas se sensibilizaram, mas depois de algum tempo, até por perceberem que essa situação seria duradoura, podem ter optado por voltar a "fechar os olhos" para a exclusão de direitos que sempre afetou boa parte da população brasileira.

Penso que, infelizmente, essa pandemia não ensinou à sociedade o enfrentamento de forma permanente dessa desigualdade estrutural, que está na base das relações sociais e nas políticas de governo em nosso país. E pior, a humanização e sensibilidade de alguns, até então desinteressados em causas sociais, mas que protagonizaram algumas ações de solidariedade no início dessa crise sanitária, foram abandonadas para a retomada de suas experiências privadas.

O campo social e público, lamentavelmente, deixou novamente de ser abraçado com força. Muitos perderam ou seguem sem a compreensão de que estamos todos e todas conectados de algum modo. No meu entendimento isso também tem relação com a narrativa de um governo que sempre zombou dessa enorme crise de saúde pública, sustentando assim uma ideologia egoísta do "não é problema meu".