Do alto de andaimes ou com os pés fincados no concreto quente de Fortaleza: há sempre um muro pronto para elas quebrarem uma barreira. Se até 2006 apenas uma mulher era reconhecidamente grafiteira na cidade, 13 anos depois elas se multiplicam - e, em nível do mar ou das nuvens, empunham latas de spray como armas potentes contra as desigualdades social, racial, de gênero e outras discriminações. O fortalecimento da presença feminina em um espaço majoritariamente masculino, porém, tem sido gradual, e acompanhado pela artista Viviane Lima, 31. Inspirada em Teia, pioneira no grafite em Fortaleza, Vivi (como assina as obras) marca os muros da cidade desde 2006, e hoje tem uma loja de artigos para grafiteiros.
"Quando comecei, me senti uma das responsáveis pelo fortalecimento da cena feminina no Estado, na obrigação e tendo o prazer de ajudar essa nova geração de mulheres e homens a iniciarem-se no universo", relata.
Com letras desenhadas que gritam por igualdade, principalmente na periferia, os trabalhos da artista estão espalhados não só por Fortaleza. Já tendo passado por Bahia, Rio de Janeiro e Pernambuco, em junho, Vivi foi a única cearense a participar de um evento internacional de arte urbana feito por mulheres e para mulheres: o Graffiti Queens, do qual participaram, em São Paulo, cerca de 100 artistas.
Reconhecimento
Romper barreiras por meio dos muros, mostrar que a rua, tão historicamente feita para o homem, é também da mulher, por direito, é uma das maiores potências da arte e do grafite, como opina a artista urbana, ilustradora e tatuadora recifense - mas moradora de Fortaleza há seis anos - Alexsandra Ribeiro (ou Dinha), 32. "A arte nos leva a lugares que a gente nunca imaginou: a rua é o principal deles, mesmo ainda sendo perigosa pra nós. Mas não vamos sós. Muitas mulheres me influenciaram a começar, lá em 2008, e ouço muito o feedback de meninas que começaram a pintar ao me verem", orgulha-se.
É a produção de uma arte-espelho, feita para que a outra se reconheça e se sinta parte, que contribui não só para aumentar a segurança feminina de ganhar as ruas, mas para estimular o empoderamento e a autoaceitação. "Eu sempre retratei mulheres, para que elas pudessem se ver na minha arte. Quando passei pela transição capilar, passei a pintar mulheres e crianças negras. Um trabalho que fiz no Cuca Jangurussu me marca muito. Uma mãe relatou que a filha viu o mural e disse 'ó, mãe, parece comigo!'. Era o grafite de uma menina negra".
O grito contra o racismo é só uma das diversas bandeiras hasteadas por mulheres que, apesar de unidas, devem ser reconhecidas em suas especificidades, como ressalta Cecí Shiki, artista urbana há dez dos 35 anos de vida. "A arte feita por mulheres comunica uma invisibilidade, necessidades muito próprias do nosso corpo, da maternidade pra quem escolhe ser mãe, do que é imposto e que não aceitamos mais, de um chacoalhar da masculinidade, de denunciar o machismo", sentencia.
Ocupar
Presença que, tantas vezes, ainda é interceptada pela prepotência masculina. "Os caras se sentem à vontade pra chegar e opinar sobre o seu trabalho, como se você não tivesse conhecimento da técnica ou do conceito. Existe um desrespeito ao espaço da mulher. A rua e o público sempre pertenceram a eles, e a mulher sempre foi relegada ao lar. Mas, hoje, temos visibilidade maior, tanto com mais trabalhos expostos como por movimentos de ocupação: grafitar, caminhar, andar de bicicleta são formas de ver mais mulheres ocupando", aponta Ceci.
Para a grafiteira Tereza Dequinta, 32, uma das integrantes do coletivo Acidum e dos nomes mais conhecidos do grafite cearense, a quantidade de meninas se apropriando da arte urbana como forma de se comunicar aumentou, mas ainda é necessário mais incentivo e grupos formados por elas. "Começamos a perder o medo de sair sozinhas, mas ainda é difícil, tem um pouco de resistência. A gente acaba saindo na rua mais no coletivo, porque é um tanto tranquilo. Porém, acredito na mudança. Até os festivais estão pensando sobre uma organização que seja igualitária".
Os murais pintados por Tereza, assinados junto ao parceiro de coletivo, estão estampados desde um paredão na Avenida Domingos Olímpio (com a ilustração "Eva", de uma mulher negra carregando várias crianças nas costas), no Centro, até as colunas do Mercado Central (com a obra Iracemas, retratos de cearenses). Iniciada no grafite desde 2006, ela também acredita que o papel da mulher dentro da arte urbana é quebrar paradigmas e impor respeito a seus lugares.
"Vejo coletivos de meninas trabalhando com lambe-lambe, falando do empoderamento feminino, do corpo, do direito à cidade. Outras trabalham mais intimistas, falando de poesia, amor, relacionamentos. Algumas falam de política, de derrubar o Governo. Existimos, estamos aqui, fazendo coisas boas. A possibilidade de estar na rua é de se comunicar com todo mundo, transformar, alcançar o outro. E a arte urbana tem o poder de multiplicar e dividir esse conhecimento em todo lugar."