A virada de ano era, para muitos, um portal mágico para solução dos problemas causados pela pandemia de Covid-19. Na prática, porém, o que se vê em 2021 é o desenho de um cenário mais parecido do que distinto do início da crise sanitária, lá em março do ano passado. A análise é de Elias Leite, médico há 22 dos 46 anos de idade, e presidente da Unimed Fortaleza desde 2018.
Em entrevista ao Diário do Nordeste, o gestor comenta sobre a alta na incidência do coronavírus na Capital, em ascendência desde outubro; a preparação da rede privada para a segunda onda e, ainda, sobre a importância de se disseminar informações que sejam acessíveis e de credibilidade no combate à pandemia.
Como está a situação assistencial da rede privada hoje?
As UTIs da Unimed estão lotadas há dias. Estávamos com 20 leitos, hoje temos 65 e vamos adequando conforme a demanda, para atender. Vivemos duas ondas diferentes. Na primeira, os casos subiram muito rapidamente: do dia 19 de março a 19 de maio, saímos de um paciente para 582 internados. Depois disso, só caiu. Já nessa segunda onda, desde 5 de outubro, os números começaram a aumentar novamente, só que numa velocidade menor do que a do primeiro momento. Isso nos dá mais condições de adequar nossas estruturas.
Por outro lado, no primeiro momento, houve o isolamento social e as pessoas não saíam de casa. Basicamente, só se adoecia por Covid. Hoje não: tem Covid e também acidentes, infecções e outras doenças. Infarto, apendicite e outras coisas acontecem a todo momento, claro, mas parece que diminuíram na primeira onda.
Qual a média atual de casos e mortes diárias?
Nos primeiros meses, morriam bem mais pessoas, cerca de três por dia. Já entre outubro e novembro, no Hospital da Unimed, tínhamos um óbito a cada dia. A taxa de mortalidade está muito menor agora, muito provavelmente porque a gente sabe tratar muito melhor a doença. Outro fator é: uma coisa é aumentar 50 casos por dia, você tem que adequar a estrutura rapidamente, botar profissionais, e eles adoeciam. Agora, a gente tem mais condições de adequar nossas estruturas.
A evolução dos casos tem sido distinta em relação à primeira onda?
Como sabemos tratar melhor, as pessoas agora estão morrendo menos, mas passam mais tempo na UTI. Geralmente, alguns casos graves evoluíam para óbito, e você girava aquele leito. Agora não: as pessoas morrem menos, mas passam mais tempo dentro do hospital, porque essa doença é muito agressiva. Não aprendemos a tratar para ficar bom logo, mas sabemos o momento mais adequado de intubar um paciente, temos o uso do capacete Elmo, a terapia de alto fluxo, a respiração artificial, por exemplo. São coisas que no começo a gente não tinha ou não sabia usar.
As pessoas dizem que tem mais jovens adoecendo, com casos graves. Tem, sim, mas não é tanto por uma mudança de perfil da doença, e sim porque tem muito mais gente exposta (que antes).
A rede privada tem funcionado como um termômetro da segunda onda?
O desenho é exatamente o mesmo de antes, mas com uma velocidade mais reduzida. Nessa segunda onda, aconteceu a mesma coisa da primeira: apareceram muitos casos aqui, principalmente na classe A/B, dos bairros Meireles, Aldeota e ao redor; e demoraram muito a crescer na rede pública. Muitas vezes eu entrava em contato com gestores públicos para comentar que os números estavam subindo, e eles respondiam que lá estava tudo tranquilo.
A velocidade de subida mais lenta fez com que a doença demorasse a chegar de uma classe à outra. Mas, neste momento, a situação é preocupante em todas as classes e áreas geográficas de Fortaleza.
Você chegou a cogitar que não haveria 2ª onda?
Essa doença é muito incerta, não se sabe quase nada dela. Em nenhum momento nós desarmamos totalmente nossas estruturas, ficamos com uma UTI de 20 leitos para Covid e uma enfermaria específica, no hospital. Pessoalmente, eu não acreditava que os números subiriam como agora, só passei a acreditar quando vi Manaus voltar ao que era.
Na Unimed, já estamos com o hospital de campanha pronto para ser montado, se precisar. Não sei se precisaremos, porque o perfil de tratamento hoje é diferente. No pico, ano passado, mais de 90% dos pacientes na UTI estavam intubados. Hoje, 60%, porque temos outras terapias - e elas nós não conseguimos fazer em hospital de campanha. Mas as expansões que nós fizemos estão muito planejadas. Chegamos a ter, em 1º de outubro, 37 pacientes internados. Até quinta-feira (11), a gente estava com 312, nove vezes mais. Estamos prontos para continuar aumentando, se for preciso.
Muitos profissionais foram afastados por adoecimento. A vacina reduz a preocupação quanto a isso?
Seus vídeos informativos publicados nas redes sociais têm uma média de 12 mil visualizações. Por que teve a iniciativa de produzi-los?
Nós temos uma obrigação social, principalmente neste momento. Já gosto muito de comunicar. Durante a pandemia, comecei a enviar vídeos com informações sobre coronavírus, e as pessoas estavam tão angustiadas e carentes de informações que começaram a repassar, gerando um impacto que eu nem esperava. Aí eu percebi que tinha como ajudá-las. Pensei: vou informar como está a evolução dos números, o que estamos fazendo para combater e, no final, deixar uma mensagem otimista. O otimismo exagerado é irresponsável, mas bem ponderado é bom.
Como ficou sua rotina na pandemia?
Sou médico de formação, mas há seis anos faço só gestão. Seria muito cômodo eu, como presidente da empresa, ter ficado aqui no meu escritório. Mas não. Ficou muito claro que eu tinha que ficar ao lado das pessoas na linha de frente, entender o que estão passando, sofrer com elas, adoecer, se fosse o caso; chorar e dar força a elas. Passei 4 meses e meio sem um dia de folga, nem um domingo. Mas fiz isso muito feliz, porque estava exercendo meu papel. Continuo fazendo isso e, felizmente, não adoeci. Vou fazer isso até enquanto tiver um colaborador atendendo paciente com Covid.
Que lições a crise sanitária tem deixado?
Acho que nós, seres humanos, sofremos muito de arrogância. Muitos acreditam que somos o centro do universo, que só existe aqui, que podemos controlar tudo, acima do bem e do mal. E hoje estamos sofrendo por causa de um vírus sobre o qual não temos controle nenhum, torcendo pra que, se houver mutação, que a vacina resolva.
A gente é muito frágil. Essa crise veio pra gente botar um pouco os pés no chão, e entender que sozinho a gente não é ninguém, não vale nada. A única forma de a gente vencer essa guerra é unindo forças. É uma necessidade prática de humildade, de deixar o egoísmo de lado.