Esta seria a história de como Íris (nome fictício) só se enxergava no escuro, não tivesse a Fundação Casa da Esperança cruzado seu caminho. Cansada de ser classificada como "estranha", começou a tentar compreender as raízes do próprio comportamento, fosse no mundo real ou virtual. "Diziam que eu era deprimida, mas não era isso, porque eu tinha vontade de comer e de descobrir a etimologia das palavras", remonta.
Aos 37 foi diagnosticada: trata-se de Transtorno do Espectro do Autismo (TEA). A Casa da Esperança, que atende cerca de 460 pessoas com TEA, atualmente pode suspender os serviços oferecidos pelo Sistema Único de Saúde (SUS). "Se fechar eu perco tudo em que apostei. Só aqui acreditaram em mim", desabafa Íris.
Referência
A Casa da Esperança é referência nacional em Terapia, Educação e Qualidade de Vida aos assistidos. Desde 2003 é credenciada ao SUS e presta atendimentos como intervenções precoces, oficinas terapêuticas e atenção à família. A organização contrata os profissionais e cede instalações, em um espaço tanto arbóreo quanto acolhedor. Prestados os serviços, a coordenação envia uma relação dos procedimentos a uma auditoria realizada em Brasília, anualmente. Posteriormente, a Secretaria Municipal de Saúde de Fortaleza (SMS) recebe um investimento do Governo Federal e repassa à Instituição. Em 2017, no entanto, a Casa recebeu, pela primeira vez, a solicitação de certidões necessárias para formalização de contratos com entes públicos.
"A gente foi logo à luta, atrás desses documentos, inclusive com o apoio do Ministério Público. Já tivemos audiências com a Secretaria, Defensoria Pública, Justiça. Sempre apelando para a sociedade e às autoridades, entendendo que o serviço não pode e não deve parar", revela a presidente da Casa da Esperança, Fátima Dourado.
De acordo com a SMS, a contratação emergencial da Fundação em 2018 só foi possível graças a um prazo improrrogável, "com o compromisso de que a Instituição regularizasse os documentos necessários à celebração do convênio". O contrato firmado (nº 146/2018), foi no valor de R$ 1.824.142,20, com término de vigência em 28 de dezembro deste ano.
Incerteza
Após o período de vigência, o cenário é de insegurança. "É muito assustador para a gente, porque não existe na cidade um local como essa excelência no atendimento. Sem que a gente precise ficar correndo de um lado para outro, preocupada. Estamos temendo muito o que pode acontecer", destaca Karine Magalhães, artesã e mãe de autista em tempo integral, como se identifica.
A preocupação de Karine é dupla: enquanto mãe de Mariana, 5 anos, e paciente, pois também se descobriu autista nas visitas à Casa da Esperança. "Sem esse estímulo, que eu mesma não tive, as crianças perdem oportunidades de aprender e desenvolver uma autonomia quando adultos", complementa.
Márcia Maia entendeu cedo a importância desse estímulo precoce. O autismo é mais um aspecto comum em seus dois filhos. O primogênito, Joaquim, 10, passou pelo Serviço; o segundo, Pedro, 5, recebe, atualmente, a força dos profissionais para falar, andar e sonhar melhor. "É fundamental que não pare o atendimento porque no autismo não existe alta, existe evolução. Não há cura, mas pode-se ter uma qualidade de vida maior. É impensável que estejamos passando por uma situação como esta", avalia Márcia.
Cerca de 90% dos assistidos esperaram na fila por uma vaga do SUS e, hoje, são atendidos gratuitamente. Atualmente, da mesma forma, 421 famílias aguardam pela oportunidade. Quem já conseguiu, vai, em média, duas vezes por semana à Casa. Alguns se deslocam todos os dias. Famílias cujos filhos têm os mais variados graus do autismo chegam como podem, de ônibus público ou até mesmo escolar.
Ganham lanche, cartão de gratuidade para transporte coletivo e carinho na dose certa: nem todos entendem o toque da mesma forma. Íris, por exemplo, considera um avanço andar de ônibus com a barreira física feita pela namorada. Na Fundação, aprendeu sobre seus limites (e sobre suas potencialidades). Pelos corredores estreitos se encontra quem seja sensível à luz, som e sociabilidade. Mas de uma forma ou de outra, todos carregam vida, nos sorrisos tímidos, no banho de bica improvisado próximo ao playground, na escrita que salva.
E salva Victor Hugo, prova de que o autismo não o isenta do fundamental: dizer que ama a mãe, Cristina, ou suplicar que não cessem a Esperança, como diz o próprio nome da Casa. "Aposto que os autistas vão enfrentar uma crise. As mães estão entrando em desespero, elas pedem socorro. Se eu fosse filho de vocês (Governo), me sentiria abandonado e me sentiria humilhado. É muito triste ficar dentro de casa sem fazer nada. A felicidade é tão pouca. Peço, por favor, que vocês não fechem a Casa", define Victor, por meio de uma carta. Foi o que conseguiu expressar perante a incerteza. Ele não respondeu à reportagem sobre o assunto. Também pudera, já disse muito na carta.
Direitos
Desde 2012, através da Lei 12.764, a pessoa com transtorno do espectro autista é considerada pessoa com deficiência, para todos os efeitos legais. Dessa forma, o autista pode ter direito a um tratamento especial em escolas, universidades e empresas (como a Lei de Cotas, que estabelece um número mínimo de funcionários deficientes). É de responsabilidade do Poder Público, então, o reforço do pleno exercício da cidadania do grupo.
"Não é um dinheiro doado. Inclusive nos chega sempre com atraso. Já realizamos reuniões mediadas pelo Ministério Público, quando nossos recursos vieram quatro meses atrasados", relata Fátima. Financeiramente, certa vez, a Casa quebrou; nunca a esperança. "Já baixaram o teto do investimento para alguns projetos, e não colocamos nenhuma criança pra fora, continuamos operando normalmente. Teve ainda um congelamento de preço nos repasses. De 2008 a 2018, pagamos nossos procedimentos a cerca de 160 funcionários com o mesmo valor", completa a presidente. Em 2008, o salário mínimo era de R$ 415.
A Casa da Esperança tem, atualmente, uma dívida que nem mesmo Fátima tem de cabeça. O jeito é aguardar a Justiça decidir pela anistia do débito. "Sou apenas uma médica e cidadã. Vou continuar tratando do autismo como faço há 25 anos. Só espero que o Poder Público tenha o mesmo empenho", finaliza.
O espectro
O autismo é uma condição que acomete uma a cada 100 crianças. A ciência estima que a genética influencie cerca de 90% na formação dos bebês com o transtorno. Os primeiros sinais da diferença ocorrem durante os três primeiros anos de vida. O diagnóstico precoce é fundamental para um tratamento eficaz. Não se cura o autismo, mas é possível viver bem com ele. A família que perceber falta de olhos nos olhos, isolamento social e pouca sociabilidade na escola, pode procurar ajuda no Centro de Atenção Psicossocial (Caps) mais próximo.
Em nenhum outro lugar, no entanto, Íris foi tão bem compreendida. "Onde procurei ajuda só me davam remédios. A Casa ajudou a me conhecer, e entender que não tem nada errado comigo, nem com meu corpo. Eu já melhorei muito aqui, estar falando com você é prova disso. São anos de invisibilidade, eu não se você, por mais que eu conte, pode saber o que é isso", desenvolve.