Entre os que vivem aqui, em avenidas ou ruelas, a sensação é geral - ao pegar um ônibus à noite e suar frio, ao precisar baixar os vidros do carro na entrada da comunidade, ao ter medo de passar por uma praça banhada por sangue de chacina. A cidade não é mais nossa. O sentimento de prisão inversa, essa sem grades, aflige também parte dos adolescentes que cumprem medidas em meio aberto nos Centros de Referência Especializados de Assistência Social (Creas): localizados em zonas de conflito, os equipamentos tornam-se "propriedades" dos territórios das facções e ficam inacessíveis à população.
Os Creas prestam, entre outros serviços sociais, assistência a adolescentes que respondem por atos infracionais em liberdade assistida ou prestam serviços à comunidade. Conforme o artigo 12 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), além destes dois, outros quatro tipos de medidas socioeducativas podem ser aplicadas a jovens em conflito com a lei: advertência, obrigação de reparar o dano, inserção em regime de semiliberdade e internação em estabelecimento educacional, estas duas últimas de competência estadual, e as demais, municipal.
Entretanto, de acordo com o titular da 5ª Vara da Infância e Juventude de Fortaleza, Manuel Clístenes, o número de adolescentes que têm descumprido as medidas "tanto de prestação de serviços como liberdade assistida" é crescente (ver quadro). "A maioria deles não está indo nem para as audiências. E, quando vão, a justificativa pelas faltas é sempre a mesma: 'não posso ir, porque o Creas fica numa região de facção rival'", relata o juiz, afirmando ainda que "ocorreram, recentemente, vários incidentes com os adolescentes e os familiares, que chegam para atendimento e encontram os rivais", salientou.
Funcionários de uma das unidades descrevem que "a equipe realizou visita domiciliar e verificou o medo da família e do adolescente"
Vulneráveis
No dia 2 deste mês, o magistrado enviou um ofício à Secretaria de Direitos Humanos e Desenvolvimento Social (SDHDS), gestora dos Centros de Referência, solicitando a presença de efetivos da Guarda Municipal de Fortaleza (GMF) para garantir a segurança tanto de funcionários como de usuários. Segundo consta no documento, os empregados de alguns dos seis Creas da Capital - nos bairros Conjunto Ceará, Mucuripe, Rodolfo Teófilo, Alvorada, Luciano Cavalcante e Monte Castelo - chegaram a ser constrangidos por membros de facções, e dois dos prédios "foram pichados com siglas de organizações criminosas".
"Esses Centros se tornaram equipamentos extremamente vulneráveis. É preciso providenciar não só segurança interna, mas policiamento no entorno, porque há risco de vida iminente", salienta Manuel Clístenes.
Por meio de assessoria de imprensa, a SDHDS esclarece que a segurança dos Creas "é feita por vigilantes terceirizados" e que "algumas unidades já recebem reforço da Guarda" - reconhecendo, porém, que "o efetivo ainda não é suficiente".
De acordo com a Pasta, entretanto, o descumprimento das medidas em situações em que o adolescente não pode se dirigir ao equipamento público "é um problema de Segurança Pública, já que os serviços são oferecidos e funcionam". Ainda assim, "em alguns casos, quando o jovem não pode entrar em um lugar que o Crea esteja, equipes de abordagem externa vão até ele para prestação do serviço". A Secretaria da Segurança Pública foi procurada, mas não enviou resposta até o fechamento desta edição
Mau funcionamento
Conforme a Superintendência Estadual do Sistema de Atendimento Socioeducativo (Seas), 900 adolescentes cumprem medidas socioeducativas no Ceará, atualmente, dos quais 40% respondem "por grave ameaça ou violência à pessoa", e os demais "por ato infracional de baixo potencial ofensivo". A modalidade de prestação de serviços à comunidade (PSC) engloba, aproximadamente, 600 jovens, de acordo com a 5ª Vara da Infância e Juventude da Capital.
Para o assessor jurídico do Centro de Defesa da Criança e do Adolescente (Cedeca Ceará), Acássio Pereira, os conflitos territoriais impostos pelas facções "são problemas recentes que só têm agravado o mau funcionamento do Sistema Socioeducativo em meio aberto". "Nós temos um número insuficiente de Creas na cidade: pela nossa população, deveríamos ter 13, e temos seis.
Assim, os equipamentos precisam dar conta de uma área muito grande, o que agrava a questão dos territórios e torna difícil acompanhar o cumprimento das medidas".
Pereira frisa, contudo, que "a ineficiência do meio aberto não pode implicar na adoção de medidas de privação de liberdade", o que, segundo ele, "agravaria ainda mais o problema de Segurança, já que não ressocializaria o adolescente".