Evitando infecções na boca de pacientes com Covid-19, dentistas relatam dramas na linha de frente

Segundo o Conselho Federal de Odontologia, apenas 17 cirurgiões-dentistas estão habilitados em Odontologia Hospitalar no Ceará

A rotina de Keller de Martini, cirurgião-dentista da UTI do Hospital São Paulo e coordenador da Comissão de Odontologia Hospitalar do Conselho Federal de Odontologia (CFO), não tem sido fácil na pandemia. Isso porque os profissionais de saúde bucal que atuam em unidades hospitalares têm enfrentado uma rotina exaustiva e emocionalmente pesada com a Covid-19.

“Ninguém esperava a chegada do vírus, que não bateu nem na porta para pedir para entrar, né? Ele entrou e realmente devastou todo o trabalho. É uma experiência diferente. A gente, como os próprios médicos, teve que aprender a lidar com o dia a dia da linha de frente, porque no começo não existiam protocolos e evidências científicas sobre o vírus ainda”, comenta o dentista.

Uma das questões mais duras enfrentada pelo profissional nesse período foi a perda de colegas de trabalho para o vírus. “Não é fácil… a gente já tinha um convívio com a pessoa, sabemos que tem família, conhecemos, então isso foi muito difícil”.

Keller relata ainda que ver os pacientes da UTI em situações delicadas e sem contato com os familiares é muito doloroso. “A parte psicológica foi algo que afetou todo mundo”

“Todos os pacientes que acabam entrando no hospital e ficando na UTI entubados não podem ter mais contato com os familiares. Então, a gente viu o desespero das famílias fora do hospital, tentando pegar alguma informação. E nesta segunda onda foi pior, porque temos uma variante mais grave, mais rápida e mais letal”, explica.

De acordo com a cirurgiã-dentista Carla Welch da Silva, profissional da UTI do Hospital Geral de Fortaleza (HGF) e conselheira do Conselho Regional de Odontologia do Ceará (CRO-CE), “dentro das unidades são várias mortes mesmo, a gente chega num determinado dia e o paciente está bem na medida do possível. Horas depois, quando a gente está atendendo o paciente vizinho, aquele que até então estava bem tem  uma parada cardíaca e muitas vezes vem a óbito. Isso é muito difícil pra gente”.

Já para o cirurgião-dentista Tácio Bezerra, que atua na UTI do Hospital Regional da Unimed e do Hospital Geral Dr. Waldemar de Alcântara, o medo de contrair o vírus era muito grande no início da pandemia, o que foi melhorando “com a evolução das pesquisas sobre o assunto e com a adequação dos equipamentos de proteção individual”.

Hoje nós sentimos uma grande satisfação em poder visualizar a melhora de alguns pacientes. Tenho percebido que, apesar das dificuldades, eles se sentem muito acolhidos, pois recebem um cuidado especializado nesse momento de fragilidade emocional”
Tácio Bezerra
Cirurgião-dentista

Rotina de cuidados

De acordo com Tácio Bezerra, os dentistas hospitalares analisam as condições dos pacientes internados tanto para manter a saúde deles - visto que, dependendo do quadro, eles podem passar vários dias sem escovar os dentes -, como também para prevenir que eles desenvolvam outros tipos de infecções, “especialmente a pneumonia associada à ventilação mecânica, que acontece comumente em pacientes entubados”.

“Além disso, realizamos a higiene bucal e observamos também outras necessidades em relação a próteses, dentes com mobilidade, processos infecciosos de origem dentária ou traumatismos nos tecidos bucais. Todas essas questões são tratadas durante a internação no próprio leito hospitalar”, ressalta.

As recomendações do CRO-CE é que os profissionais sigam os protocolos de saúde, usando máscaras N95, protetores faciais, óculos de proteção, macacão, gorros e luvas descartáveis. “Principalmente para nós dentistas, porque a gente sabe que o vírus está muito presente nas cavidades oral e nasal dos pacientes.

Além disso, a vacinação dos dentistas é muito importante nesses ambientes tão contaminados”, relata Carla Welch.

Baixo percentual de dentistas hospitalares

Segundo o Conselho Federal de Odontologia, apenas 17 cirurgiões-dentistas estão habilitados em Odontologia Hospitalar no Ceará. No âmbito nacional, o número também é baixo, com 2.120 profissionais registrados. “É importante ressaltar que o dentista que atua nas UTIs está integrado com as equipes multidisciplinares sempre buscando a melhoria da qualidade de vida dos pacientes e a desospitalização deles”, detalha o coordenador da Comissão de Odontologia Hospitalar do CFO Keller De Martini.

Carla Welch, também conselheira do CRO-CE, ressalta a importância de que haja um número maior de dentistas atuando nos hospitais. “A especialidade de odontologia hospitalar é imprescindível numa equipe multidisciplinar, trazendo um novo olhar sobre questões específicas dos pacientes, inclusive com dentistas realizando pesquisas científicas e tentando entender causas de determinadas lesões bucais, principalmente nos pacientes entubados”.

Projeto de Lei

O Conselho Federal de Odontologia tem se posicionado em defesa da obrigatoriedade de profissionais da área nas unidades de terapia intensiva e de internações prolongadas nos hospitais. Atualmente, o Projeto de Lei 883/2019 que trata do assunto aguarda parecer do relator na Comissão de Seguridade Social e Família (CSSF). Outra proposta semelhante foi vetada pelo presidente Jair Bolsonaro, em 2019, mesmo com aprovação da Câmara dos Deputados e do Senado Federal - a PLC 34/2013.

“A ideia do CFO é continuar apoiando essa lei que está tramitando agora e ajustar alguns detalhes em relação ao porquê que ela foi vetada anteriormente, tentando conversar com novas frentes. Paralelo a isso, a gente tem leis municipais e estaduais em alguns lugares do Brasil que dão amparo nesse sentido, mas eu acho que a lei federal seria a cereja do bolo, pois contemplaria uma visão nacional sobre o tema”, esclarece Keller De Martini.