“Quando o senhor era mais jovem, parou de estudar por quê?” A resposta não vem de imediato. No lugar dela, ata-se um nó na garganta, que logo se rompe em lágrimas. O silêncio, afinal, também pode dizer muito. As palavras travadas do aposentado Mário de Assis, por exemplo, falam de emoção e de lembrança triste, mas, ao mesmo tempo, de alívio. Aos 62 anos de idade, Mário voltou a estudar, depois de quatro décadas de tentativas frustradas – e ilustra, assim, que é sempre tempo de buscar conhecimento e empoderamento.
Nascido e criado em família de baixa renda, o aposentado teve de optar entre o estudo e o sustento: uma escolha que, no fim das contas, se impõe. “Sou filho de pais separados, minha mãe teve 14 filhos. Morava próximo ao (Ginásio) Paulo Sarasate, era muita pobreza ali. Fui crescendo, tentando estudar e não conseguia, trabalhando. Fui pra São Paulo, lá tive duas filhas, tentei retomar os estudos de novo e não deu. Agora que voltei pra minha terra, consegui”, relembra.
No Sudeste, o caos da vida de motoboy e, depois, de taxista atropelou a rotina de Mário. Tudo isso se juntou aos problemas familiares e o paralisou: entre 1975 e 2015, o aposentado nunca conseguiu ter qualquer tempo ou estrutura pra voltar às salas de aula. Hoje, a vida é um jogo virado: Mário é um dos 231 estudantes idosos matriculados no ensino médio da Educação de Jovens e Adultos (EJA) no Ceará, e estuda no CEJA Neudson Braga, no bairro Benfica.
Sempre fui muito aplicado. Tô sempre estudando. Quero desenvolver uma atividade de pensar, escrever... Me vejo como uma pessoa que pôs a vida debaixo da pedra, e agora tô removendo.”
Motivação
Para a assessora técnica da EJA na Secretaria Estadual da Educação (Seduc), Liliana Farias, o ambiente escolar ajuda a dissipar as pressões sociais que afastaram as pessoas idosas da educação formal. “Quando perguntamos o que os trouxe de volta, respondem ‘não tive condição antes, tive que trabalhar, tive filhos, casei, tive que manter minha família, não dava tempo’... São sonhos adiados, e é precisa uma escola capaz de lidar com esses saberes e respeitar o tempo”, avalia.
A desigualdade de gênero, fortalecida pelo modelo “tradicional” e patriarcal de família, foi determinante para o atraso da vida escolar de Milena Lima, 53. Ao contrário de Mário, que parou de estudar pra trabalhar, foi o casamento abusivo que a afastou da busca por conhecimento, quando ainda fazia o 6º ano do Ensino Fundamental – mas ela faz questão de dizer que, mesmo parada, não estacionou.
“Meu marido era troglodita, não queria que eu fosse pra lugar nenhum. Por eu não ter esse conhecimento que tenho hoje, achava normal estar só dentro de casa, cuidando dos filhos. Mas quando fui vendo que as minhas crianças precisavam adquirir um conhecimento, vi que não era daquele jeito”, recobra a estudante. “Esse tempão todinho eu nunca deixei de ter meu conhecimento particular. Sempre gostei de estudar, tô atenta nos livros, nas reportagens, tudo o que se refere ao ser humano”, sentencia.
O repertório de conhecimento carregado pelas pessoas mais velhas é uma vantagem delas no processo de aprendizado, como avalia Liliana Farias, e valorizar isso é uma forma de atraí-las e mantê-las nas salas de aula. “Se há, por um lado, a dificuldade de lidar com as tecnologias e conhecimentos mais modernos, por outro há um saber acumulado ao longo da vida. E a EJA permite que o professor faça essa correlação entre o saber da prática e o saber da ciência, que está nos livros.”
CEJAs estão distribuídos pelo Ceará, de acordo com a Seduc, dos quais nove ficam em Fortaleza e os outros 24 no interior do Estado.
Objetivos
Além do diploma de conclusão dos ensinos fundamental e médio, outra conquista se revela às pessoas idosas ao retomarem os estudos: o empoderamento, como avalia Maria José Barbosa, professora do Departamento de Estudos Especializados da Faculdade de Educação da UFC.
“Quando não tem estudo, muitas vezes o idoso se considera um ninguém, ‘não sou ninguém para opinar sobre isso’. Mas a partir do momento em que conclui, ele se sente mais empoderado socialmente. Essa pessoa encontra espaço na sala de aula para oralizar, se colocar, passa a ser mais respeitada como quem tem algo a dizer. O adulto que não estuda é emudecido por uma realidade que exige que ele tenha um título para poder falar”, pontua a docente.
Mário e Milena são exemplos desse sentimento de valorização – e, por isso mesmo, querem continuar estudando mesmo após concluírem o ensino básico. Ele pretende “fazer psicologia, pra ajudar as pessoas que sofrem pressão do meio e têm dificuldade de expressar o que pensam”. A meta dela também é fazer faculdade, mas, “se não conseguir, quero fazer cursos técnicos em todas as áreas que ajudem a tratar o ser humano bem. Mas uma coisa que eu queria muito era fazer na área de psicoterapia. É um sonho.”
Para quem quer retomar os estudos, independentemente da idade, é sempre tempo. Os 33 CEJAs do Ceará estão abertos para matrículas durante o ano inteiro. Na página da Secretaria da Educação, é disponibilizado um tira-dúvidas sobre como funcionam os Centros de EJA.
Série
As cinco reportagens da série “É sempre tempo”, sobre longevidade, serão veiculadas na Rádio Verdes Mares (AM 810) ao longo desta semana, até a próxima sexta-feira (30). O próximo tema é sobre as estratégias para garantir uma velhice saudável.