Dia da Alfabetização: trajetórias e rotinas de mulheres pretas e pardas que não sabem ler no Ceará

O Ceará é o sétimo estado do Brasil com maior taxa de analfabetismo entre população preta

Há 54 anos, foi criado no Brasil o Dia Nacional da Alfabetização. Três anos depois, nascia a cearense Rosa Nascimento, 51 anos. Hoje, embora ela fale sobre o assunto, conta como é estar do outro lado dessa história, mas não vai conseguir ler esse texto: Rosa nunca foi alfabetizada. A cozinheira integra o grupo de 771 mil (14,7%) pessoas pretas e pardas no Ceará, com mais de 15 anos, analfabetas. Os dados são da Pesquisa Nacional por Amostra Contínua Domiciliar 2019 (PNAD) e revelam que o Estado é o 7º do Brasil nesse ranking, tendo 11,5% de mulheres analfabetas e 16% de homens

Em 2019, havia 11 milhões (6,6%) de pessoas com 15 anos ou mais de idade analfabetas no País. Dessas, 56,2% (6,2 milhões de pessoas) viviam no Nordeste. A discrepância existente no acesso à educação entre as distintas cores e raças fica nítida quando se percebe que, no Ceará, 10,4% (199 mil) dos brancos são analfabetos. Entre pretos e pardos, somam-se 572 mil pessoas que não sabem ler e escrever. É possível ainda aferir, a partir do dados da PNAD, que no Brasil, o analfabetismo também está diretamente associado à idade. Quanto mais velho o grupo populacional, maior a proporção de analfabetos. No Ceará, 40% dos analfabetos pretos e pardos têm mais de 60 anos.

Rosa começou a trabalhar aos nove anos de idade como empregada doméstica, época em que sua mãe a retirou da escola. Pelo que se recorda do pouco tempo na instituição de ensino, não era uma boa aluna. E ao invés de ter sido incentivada a continuar os estudos, foi trabalhar como empregada na casa de sua madrinha. Rosa permanece sem saber ler e  continua trabalhando. "Não sei ler, mas trabalhar é comigo mesmo!”, justifica. 

Aos 16 anos engravidou, o que a afastou ainda mais dos estudos. “Eu até conheço as letras, mas não consigo formar nenhuma palavra”, explica a cozinheira. Quando indagada se gostaria de voltar a estudar, ela afirma que tem receio. Não sabe explicar o motivo, mas diz que não se sente à vontade de retornar por já ter mais de 50 anos. Rosa tem outras irmãs que também não concluíram os estudos. “Sempre é assim né.. pessoa humilde e pobre nunca consegue ir adiante”, conluir.

Desigualdade histórica

Para Silvia Maria, doutora em Educação e técnica pedagógica da Secretaria de Educação do Estado do Ceará (Seduc), essa disparidade racial no acesso à educação ainda permanece “porque vivemos num país imerso no racismo estrutural, que inviabiliza a população negra”. Fato que foi cravejado na história do Brasil com a Lei nº 1, de 14 de janeiro de 1837, que proibia “frequentar as escolas públicas os escravos e os pretos africanos, ainda que sejam livres ou libertos”. Segundo a doutora, quando essa parcela da população é invisibilizada, ela fica caracterizada como uma população à margem das políticas públicas

“Tenho optado dizer que seja proibido o acesso a um tipo de educação”, explica Maria Kellynia Alves, pedagoga e doutoranda em educação brasileira, quando questionada sobre o acesso à educação da população negra. Segundo a doutoranda, mesmo no período escravista, como em leis como o Ventre Livre, as elites perceberam que seria necessário educar uma parte da população negra, para assegurar a domesticação, a subalternidade, o trabalho precarizado da mão-de-obra mais barata.  “Assim a educação deveria disciplinar e apagar os vícios da senzala”, explica. 

De acordo com Kellynia, é urgente romper com os valores da colonialidade ainda presentes na sociedade brasileira, que legitimam as estratégias subalternizantes dos corpos negros e indígenas. “O Estado tem papel relevante nessa construção. As instituições de maneira geral (escola, sociedade, família, mídia, etc) naturalizam ainda o lugar social atribuído ao negro como o lugar do trabalho braçal ou da subalternidade, além de outros estereótipos elaborados, sobre a mulher negra". A pesquisadora alerta que, os estudantes negros não sendo percebidos e ou reconhecidos como protagonistas históricos são invisibilizados nos currículos, práticas e espaços. 

"Temos que lembrar que o racismo estrutural anseia manter o corpo negro em seu lugar social de 'menos-vida'", Kellynia Alves, pedagoga

“Precisamos avançar muito para que o acesso à educação seja universal”, afirma Tom Jones Carneiro, assistente técnico da educação escolar quilombola e para as relações étnico-raciais da Seduc. Segundo Tom, os processos de inclusão educacional da população negra são bastante recentes.  “Comparando-se esse tempo de colonização e abolição, as legislações que tornaram a educação como um direito de todos tem pouco tempo pra se resolver um problema”. O técnico acrescenta que o Estado do Ceará tem se mantido aberto ao diálogo para as demandas da população. 

O retorno ao bê-a-bá

“Você quer me ver escrevendo?”, pergunta animada a dona de casa Goreth de Sousa, 49. Não faz muito tempo que a mulher aprendeu a escrever seu nome corretamente. Durante anos, escreveu de forma errada. “Eu vivia no mundo dos cegos”, tenta traduzir Goreth quando conta sua experiência com o analfabetismo. A moradora de Baturité, interior do Ceará, teve uma infância difícil na roça, com pais também analfabetos. Hoje, a dona de casa, cuida de uma filha doente e revela que chorava muito por não saber ler. Motivada por isso, ingressou em 2016, no Centro de Educação de Jovens e Adultos (CEJA) Donaninha Arruda, embora não possa frequentar assiduamente,  já consegue entender algumas palavras e escrever seu nome.

“Eu chorava e ria de tanta emoção quando escrevi Francisca Goreth de Sousa Souto”, Goreth de Sousa, dona de casa

Próximo de Goreth em Baturité, vivia Conceição, 41 anos, que atualmente reside em Barreiras. Ela tem uma trajetória comum com as mulheres desta matéria: todas tiveram a dificuldade como companhia. A agricultora fala sobre a relação difícil com seu pai, que a impediu de se alfabetizar por acreditar que o conhecimento estava restrito aos homens. Ela chorava constantemente pedindo ao pai para ir estudar, o que resultava, inclusive, em violência física. Em 2018, Conceição retomou os estudos, em meio a diversas dificuldades, uma delas era a distância da sua casa até o CEJA. Ela tinha que andar 3 km para chegar em um ponto de ônibus. Hoje, ela não está matriculada em nenhuma instituição de ensino e nem sabe escrever de forma correta e consistente, mas, ao menos, sabe ler. “Eu era uma criança que tinha provado pela primeira vez na vida um doce”, explica ela sobre a sensação de ler pela primeira vez. “Conhecimento, minha filha, só Deus tira”, conclui.

Goreth e Conceição não se conheceram, mas fizeram o mesmo caminho de aprendizado. Na rua de barro e ladrilhos de pedra, na zona periférica do Maciço de Baturité, adentraram pelo portão do CEJA Donaninha Arruda. E lá chamaram a mesma professora de “tia” Alice Soares. A professora tem mais de 10 anos de profissão e  declara que aos 15 sabia que sua vocação era ensinar, “A maioria tem uma história de vida tão sofrida, são tantas dificuldades na vida deles, que quando nós os ensinamos eles nunca esquecem isso. Ficamos na memória deles para sempre. É muito gratificante”, finaliza. Em meio a risos, comenta que não tem dimensão de quantos alunos já ensinou a ler. 

“Tem que ter vocação para ensinar esses jovens e adultos a lerem, porque é um processo que exige muito cuidado e amor. É como ensinar um pássaro a voar”, diz Alice Soares, a professora.