A casa simples de fachada estreita, muro baixo e de apenas uma porta e uma janela, por vezes passa despercebida em meio à grandeza e agitação que se formou ao seu redor. A morada do número 447 da Rua Ildefonso Albano, no Meireles, é um dos exemplos de resistência a um movimento urbanístico que só cresce em muitos bairros de Fortaleza: o da verticalização. Nesse contraponto, mudam-se as formas, os propósitos, e diversificam-se os potenciais de uso.
Do entorno da habitação, saudosas lembranças são remetidas à sua proprietária, a aposentada Nerci Jardim Silva, 80. Entre elas, os antigos vizinhos, que hoje deram lugar a grandes prédios residenciais, empresariais ou a estabelecimentos comerciais e de serviços. "Era tão tranquilo, a gente colocava cadeiras na calçada para conversar, tinham bodegas que não se vê mais hoje. Tinha muito pé de árvore, mas hoje são muitos prédios, me lembro do primeiro que foi construído", conta.
Há mais de 30 anos com raízes fincadas no logradouro, Nerci conta que ela e o esposo, já falecido, herdaram a propriedade onde ele morou quando criança, ao lado dos pais. Motivo esse que fez com que o cônjuge recusasse todas - e não foram poucas - as propostas de compra do imóvel ao longo dos anos.
Por mim, até teria vendido, mas ele nunca aceitou, pois foi criado aqui. Eram as memórias dele e da mãe. Hoje, sou eu que não vendo mais, em homenagem a ele."
Mas essa relação entre o antigo e o novo tem pontos negativos, como pontua a aposentada. A principal queixa vem de quando a Praia de Iracema recebe grandes eventos e sua casa acaba virando alvo de vandalismo. "Jogam coisas na minha porta, na janela, copos, garrafas, deixam lixo. Não me incomodo com as festas, mas isso me deixa chateada. Outra coisa que mudou foi a insegurança que está bem maior. Antes só se via ladrão de galinha", aponta.
Adensamento
Entre os bairros de Fortaleza mais verticalizados e, por consequência, mais adensados, estão Centro, Meireles e Aldeota, seguidos de perto por Papicu, Guararapes, Fátima, São João Tauape e Cocó. Mas na cidade onde se constrói todos os dias, o movimento segue em expansão para outras localidades.
Dos 463 alvarás de construção emitidos online pela Secretaria de Urbanismo e Meio Ambiente (Seuma), entre 2017 e 2018, 55% concentram-se nas secretarias regionais V e VI.
alvarás de construção, em média, foram emitidos para prédios residenciais e comerciais com mais de três pavimentos, segundo a Seuma
Se de um lado - nos bairros mais verticalizados - sobressaem-se grandes condomínios residenciais e empresariais frente a poucas e resistentes casas, de outro, é pela oferta de serviços que o território é dominado. Blindada às investidas do mercado imobiliário, a residência da funcionária pública Marcela Tiago de Silva, 52, é uma das poucas ainda existentes na Rua Ana Bilhar, bem no miolo do Polo Gastronômico da Varjota.
Ao lado de uma barbearia e uma famosa rede de sorveterias, a moradora diz gostar do bairro e da casa onde nasceu e criou os cinco filhos, não tendo pretensão de sair. Dos costumes perdidos com a transformação do lugar, lembra do hábito de acender fogueira e da boa relação com a vizinhança, hoje nem sempre possível.
"O que me incomoda é a grande quantidade de entregadores, que fazem muito barulho e como são muitos restaurantes o tráfego aqui em frente é muito grande, dificultando para nós quando vamos tirar o carro de casa. Mas por outro lado, ter muitas opções de serviço é bom. Temos tudo o que precisamos ao nosso redor. Já tivemos muitas propostas de venda da casa, mas não sairemos", diz a moradora.
Essa diversidade morfológica das construções é defendida pelo professor do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Ceará (UFC), José Almir Farias Filho, pela promoção de uma diversidade de usos no território.
"Nem só casas e nem só edifícios, mas uma mistura entre eles. Enquanto os edifícios que nascem como residenciais se tornam a vida toda residenciais, o imóvel individual pode se transformar em comércio, em alguma atividade de serviço e obviamente mantendo-se a vizinhança", fala.
Empobrecimento
Para o especialista, a uniformização das habitações, causada pelo processo de verticalização, gera um empobrecimento dos bairros, potencializado pela intensa especulação imobiliária. Como consequência às moradias resistentes ao movimento, no entanto, destaca a perda das relações. "Se havia antes uma relação de vizinhança com outras unidades unifamiliares, isso se perde. Muitos se queixam também da perda da privacidade, comprometendo quintais, varandas, jardins. Isso não é confortável, a família pode se sentir espremida nesse sentido".
Nesse contexto, ainda segundo o urbanista, a legislação municipal é desfavorável, por não proteger algumas zonas da cidade. "Mesmo em bairros onde não existe uma questão patrimonial relevante, preservar o modo de vida é importante, inclusive do ponto de vista ambiental. Se você fizer uma contagem de metros quadrados de áreas verdes em unidades residenciais de casas, a probabilidade é muito maior de que haja um percentual de área verde mais significativo do que só uma quadra de edifícios. Mas a nossa legislação não olha para isso, ela é muito voltada para o mercado", analisa.