Os efeitos da pandemia na educação são incalculáveis. Os diversos níveis de ensino seguem afetados pelas incertezas geradas com a crise sanitária. Mas, os estudantes de uma etapa, em especial, além de sentirem os impactos diários, têm que lidar ainda com o aumento de expectativas à medida que o ano letivo corre. São os candidatos ao Exame Nacional do Ensino Médio (Enem).
Neste ano, 98 mil cearenses estão matriculados na última série desta modalidade de estudos e 99% deles estão inscritos no Enem, conforme dados da Secretaria da Educação do Ceará (Seduc). Se no contexto de normalidade garantir bons índices é um desafio histórico à rede pública devido às disparidades, o momento agora exige mais envolvimento da comunidade escolar e das famílias.
Hoje, o SVM conta como profissionais e alunos de escolas públicas do Ceará que se destacaram na prova em 2019 têm enfrentado esse período. As adaptações são cotidianas no difícil percurso que foca o sonhado acesso ao ensino superior.
As provas da edição 2020 do Enem, adiadas devido à pandemia, serão aplicadas em janeiro (presenciais) e fevereiro (virtuais) de 2021, conforme o Ministério da Educação (MEC). Até lá, milhares de estudantes da rede pública do Ceará vão, em meio às limitações, se preparando para esta avaliação. No ano passado, de acordo com os microdados do Enem, divulgados pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) no final de junho, entre as 50 escolas do Ceará que tiveram o melhor desempenho na avaliação – considerando a média da nota da prova objetiva – há 5 instituições da rede pública.
Média
Uma delas, a Escola Estadual de Educação Profissional Adriano Nobre, no município de Itapajé. A média alcançada pelo conjunto de alunos da instituição na prova objetiva de 2019, foi de 581,46 e na redação 791,63 pontos, de acordo com dados do Inep. O segundo melhor índice entre as instituições pública no Estado. Conforme a direção da escola, dos 142 alunos que fizeram o Enem, 102 ingressaram na universidade. Um índice satisfatório. Mas, como tentar mantê-lo ou até superá-lo no contexto em que há agravamento dos percalços?
“Em março, quando ficamos sabendo que precisávamos parar e ir para a casa, a primeira coisa que pensamos em fazer foi não perder o vínculo de forma alguma com os estudantes e as famílias. Passamos logo a fazer ligações e falar no Whatsapp lembrando a importância deles acompanharem aulas todos os dias. As aulas online. Além disso, trabalhamos também o envio de simulados, com questões do Enem”, conta a diretora Silvandira Mesquita. Na unidade, todos os 168 estudantes da 3ª série do Ensino Médio estão inscritos no Enem. Segundo Silvandira, apesar de estarem muito abalados com todas as mudanças, “nenhum aluno apresentou vontade de desistência”, destaca.
As adversidades persistem. E se ampliam. Mas, os estudantes, com apoio da comunidade escolar, tentam reverter mais uma vez esses dilemas. Assistir aulas remotas na casa de outros colegas, devido à falta de acesso à internet nas próprias residências é uma das soluções. Iniciativas que demandam cuidado redobrado, conta a estudante Shirley Albuquerque, 17 anos. “No meu caso, eu tenho computador e internet em casa, então posso estudar. Mas a realidade não é igual para todos. Tem muita dificuldade com a acessibilidade. Alunos que não têm acesso às plataformas digitais ou não podem imprimir o conteúdo. Temos que pensar nas pessoas que não têm a condição. Mas, a escola desde o início deu apoio. Fez o mapeamento para saber quais alunos não tinham esses acesso e também quem não conseguia ter o material impresso”, relata.
Shirley mora a 27 km da escola. No município de Irauçuba. Em tempos de normalidade, tem aula das 7h às 17h. Na pandemia, manteve as aulas da manhã e tem algumas à tarde em dias alternados. Todas virtuais. Além disso, relata, a escola promove aulões à noite também para acrescentar na formação daqueles que, assim como ela, mantêm o anseio de ter uma boa atuação no Enem. E quem sabe, projeta Shirley, esse empenho aliado aos efeitos do suporte da gestão escolar, a faça, em breve, cursar direito.
Conquistas como esta são compartilhadas por um número crescente de estudantes nos últimos anos. Conforme a Seduc, a quantidade de alunos aprovados em universidades públicas e privadas no ano de 2018 foi 20.207. Um crescimento de 19,6% em relação a 2017, quando 16.897 jovens conseguiram acesso ao Ensino Superior. Em 2016 e 2015, esses números foram, respectivamente, 13.516 e 10.035. Os dados de 2019 ainda serão divulgados pela Seduc.
Quebra
Os primeiros sinais da possível interrupção das aulas presenciais serviram para mobilizar a Escola Professor Walquer Cavalcante Maia, em Russas, como lembra o diretor, Tadeu Celedonio. “No primeiro momento a gente já orientou os alunos, passamos de turma em turma falando para continuar os estudos. Não tínhamos ainda o desenho de como seria o atendimento, mas deixamos eles saírem da escola com a certeza que eles não iriam ficam desamparados neste momento”. Todos os estudantes foram aconselhados a levar os livros didáticos para o apoio dos estudos.
Os 15 dias programados para o ensino remoto se estendem desde então. Os professores da instituição se reúnem semanalmente para trocar experiências e avaliar os métodos empregados. “Hoje, nós sabemos nominalmente os alunos que não têm acesso às mídias para que eles possam saber o que está acontecendo na escola. A gente faz o mapeamento e faz estratégias de deixar o material impresso na escola até chegar a ir à comunidade para a entrega”. Tadeu explica que pais de outros alunos e moradores da região se organizam para levar os materiais de estudo.
Com as reuniões virtuais de pais, mais pessoas conseguem acompanhar os rendimentos dos filhos nos estudos. “Aqueles pais que nunca puderam ir à escola por causa do horário comercial podem participar e isso pode ser um legado da pandemia do novo coronavírus”.
Família, estudantes, professores e gestão precisam estar alinhados nesse momento, como destaca o Coronel Cardoso Maia, chefe da Divisão de Ensino do Colégio Militar de Fortaleza (CFM) onde cerca de 120 concludentes se preparam para o Enem. “Um grande fator favorável que a gente tem é a plataforma de integração professor-aluno que potencializa esse ensino à distância. Quando começaram as aulas virtuais, elas fluíram normalmente, com algumas correções e aperfeiçoamentos pontuais”, lembra.
Os educadores aproveitaram o espaço das redes sociais para não deixar os candidatos perderem a motivação. “Essa é mudança drástica e os alunos do Colégio Militar têm uma ligação muito estreita com o Colégio, amor à camisa. Então, eles sentiram esse afastamento. Fomos identificando um grau de sensibilidade maior e a gente deu suporte com a nossa seção de apoio psicopedagógico”.
Além dos esforços para manter o rendimento dos estudantes, a escola já preparou um protocolo para o retorno às atividades presenciais, ainda sem data certa, com triagem na entrada, distanciamento de carteiras, cronograma de rodízio entre os ensinos e disponibilização de materiais de higiene.
Trabalho conjunto
Em Sobral, ao norte do Estado, alunos e professores têm em mente um lema: "a escola pública pode e a Escola Lysia Pimentel comprova". São 152 concludentes, todos matriculados no Enem, acompanhados por uma equipe motivada pela transformação social que a instituição representa para o local. "A nossa preocupação era a de que os estudantes não perdessem o vínculo. Muitas vezes a situação não está boa e a gente não pode perder esse vínculo com o aluno", destaca a diretora Ana Emília Dias Pinheiro.
Esse contato com os estudantes, prioridade dos professores, foi possível devido ao registros atualizados e o trabalho de acionar aqueles que demonstram alguma dificuldade para assistir as aulas virtuais. No processo, todos aprendem."Fomos adequar os horários de aulas, a quantidade de atividades de acordo com a nova realidade que era mais cansativa do que a presencial. Imagine o aluno que tem uma máquina ruim, ou que o celular serve para ele e os irmãos, um concorrência para fazer os deveres, outros que precisam pedir a internet do vizinho emprestado", exemplifica.
Métodos empregados nas aulas presenciais foram adaptados ao ambiente virtual como as oficinas de redação que registram a melhora do texto dos estudantes em cada bimestre. Com isso, como informa a diretora, a escola alcançou a média de 852.76 na nota da redação superando até escolas particulares da cidade. Além disso, as aulas continuam planejadas para permitir que todos alcancem um bom resultado e, para isso, dando reforço entre turmas para aqueles com maiores dificuldades. "O aluno do terceiro ano vai sair no fim do ano e, em janeiro, faz o Enem. Se ele não entra na Universidade fica muito difícil. Nós estamos numa situação nova de desemprego e as famílias passando por situação difícil", relata.
"As nossas alunas estão com mais dificuldades do que os nossos alunos porque, além de tudo, elas estão ajudando as mães nas tarefas de casa. Agora os meninos não estão ajudando. Que história é essa? São coisas que a gente vai descobrindo, mas a gente também aumenta o nosso poder de empatia, de abertura ao novo e de solidariedade".
Do sonho a concretização dos esforços, egressos já conquistaram vagas em cursos concorridos como Medicina e Engenharias. "A gente tem a união e o compromisso de cada profissional que trabalha aqui. Do diretor ao cozinheiro, do vigilante ao pessoal da limpeza geral, todos tem essa vontade de ajudar. Toda a equipe tem orgulho de saber que é um propulsor dos alunos.
Planejamento
Sobre as estratégias de acompanhamentos dos estudantes, a Seduc informou, por meio de nota, que “as escolas estaduais construíram seus planos de atividades remotas, com alternativas para atender aos que têm acesso às tecnologias e aos que precisam receber atividades impressas, pelo rádio ou pela TV, por exemplo”. Aos concludentes, o projeto “Enem Chego Junto, Chego Bem” dá suporte às inscrições, preparação e ao ingresso na Universidade.
Artigo de opinião
Ruy de Deus e Mello Neto, Professor de Política Educacional na Faculdade de Educação da Universidade Federal do Ceará.
@ruydedeus (Twitter)
Há poucos meses, o Ministério da Educação anunciou o adiamento do Enem 2020, em função da pandemia de Covid 19. O isolamento social tornou mais assimétrica a já desigual disputa por vagas no ensino superior. Diferentes condições de acesso ao ensino remoto e a incerteza do futuro próximo contribuíram com o consenso, embora tardio, sobre a necessidade de repensar o calendário do exame.
A alteração das datas atende a uma demanda da sociedade civil, mas as discussões sobre os impactos de tal decisão ainda não parecem ter entrado em pauta. Vale lembrar que o Enem, além de processo seletivo, configura-se, em função das Leis nº 11.096 e nº12.711 (ProUni e Lei de Cotas), como uma ferramenta de diversificação e de redução da desigualdade no acesso ao ensino superior. O Enem — intermediado pelo SisProuni e o Sisu — consolidou-se como um eficiente instrumento de promoção de acesso de jovens pertencentes a grupos historicamente excluídos deste nível de ensino.
A realização do exame tornou-se, nos últimos anos, uma estratégia de ruptura com trajetórias familiares de não acesso aos níveis mais altos de formação educacional. O jovem de baixa renda passou a construir seus planos de ascensão social baseado em uma chance factível de sucesso no exame, que, de alguma maneira, modula os sonhos, desejos e, até mesmo, os limites do possível e do improvável. O jovem das camadas populares que hoje encontra-se concluindo o ensino médio frequentava o quarto ano do ensino fundamental quando a Lei de Cotas foi implementada. Assim, é muito provável que, quase que como uma força motriz, o Enem tenha se tornado o objetivo central da trajetória desse estudante. No jargão popular, o ensino superior deixou de ser “coisa de rico”.
Em contrapartida, esse mesmo jovem se depara hoje com incertezas em relação ao exame e, mais importante, com um modelo de educação remota que, embora necessário, funciona, quando muito, como um paliativo para o fato de que não há, e possivelmente não haverá, aulas presenciais por um longo tempo. O jovem que havia planejado sua vida escolar para fazer o Enem em 2020 se vê, neste mesmo ano, com quase nenhum estímulo para realização do exame, vivencia um natural distanciamento da vida escolar e, em função da crise econômica, enfrenta maior cobrança para entrar no — normalmente precário e sem perspectivas — mundo do trabalho possível.
Toda uma trajetória escolar colocada em xeque, todo um planejamento de vida na berlinda e toda uma geração sob o risco de presenciar a destruição da noção de que políticas públicas podem transformar realidades.
Eis então um dos grandes desafios a serem enfrentados: não permitir ao jovem que o imaginário do “é possível, se eu me esforçar” retorne ao do “não é para mim”. Uma missão da sociedade civil, dos governos, das escolas, de todos.