Gripes constantes e uma coluna torta ao sentar. Esses foram os primeiros sintomas que Valcirene de Lima, 36, observou na primogênita Claudiana, ainda bebê. Só quatro anos e muitos médicos depois descobriria: a filha tinha mucopolissacaridose.
A doença genética, chamada de MPS, é tão rara que tem uma média de apenas dois casos novos por ano no Ceará. De acordo com estudo da Rede MPS Brasil, divulgado neste ano, o Estado registrou 88 pessoas diagnosticadas entre 1982 e 2019 (37 anos).
Três delas estão na casa de Valcirene, em Fortaleza. Além de Claudiana, hoje com 19 anos, os irmãos Claudiano, 16, e Carlos Henrique, 12, também convivem com o tipo VI da MPS, conhecido como Síndrome de Maroteaux-Lamy.
Eu ia no médico, nessas gripes e febres dela, e eles diziam que deveria ser ‘coisa dos dentes’, que eu não me preocupasse.
Após contrair uma pneumonia, aos 2 anos, Claudiana precisou ser internada, e só então a condição de saúde começou a ser investigada. “Só descobrimos a MPS quando ela tinha uns 4 anos. O Claudiano, como ia comigo pras consultas, foi diagnosticado logo”, relembra.
O terceiro filho, Carlos, foi contabilizado como novo caso antes mesmo de nascer, e se juntou aos irmãos na luta judicial por um tratamento de alto custo, incorporado ao Sistema Único de Saúde (SMS) apenas em maio de 2020.
Com a pandemia, a rotina de cuidados chegou a ser interrompida: para chegar ao local do tratamento motor dos filhos, Valcirene precisava pegar quatro ônibus com eles três. Por medo, interrompeu as sessões de fisioterapia, retomadas há poucos meses. "Uma ONG paga o táxi pra gente ir pro hospital", explica a mãe.
Hoje, a rotina da família é próxima de qualquer outra que tenha três adolescentes, cabidas as especificidades impostas pela síndrome. "Os mais velhos têm dificuldade de andar, usam andador. A Claudiana começou a parar de andar com 14 anos. Se ela tivesse sido diagnosticada mais cedo, não estaria assim", reconhece a mãe.
Diagnóstico tardio afeta sobrevida
Para Ana Lara, 8, a identificação da doença foi mais rápida: aos 2 anos, diante de atraso no crescimento, foi encaminhada a uma bateria de exames, que encontraram a MPS tipo VI. O tratamento, contudo, só foi iniciado “aos 3 ou 4 anos”, como relembra o pai, Marcos Aurélio Martins, 56.
O diagnóstico e o tratamento dela, assim como os do trio de irmãos, foram feitos no Hospital Infantil Albert Sabin (HIAS), em Fortaleza – onde, toda sexta-feira, eles passam pelo menos quatro horas para tomar toda a medicação.
A médica Erlane Ribeiro, geneticista do HIAS, explica, porém, que "tratar não é só com remédio”. As complicações da síndrome podem afetar desde a visão até o sistema neurológico, exigindo acompanhamento constante.
A doença não deixa de existir, mas, sendo tratada, ela tem evolução muito mais lenta e as crianças vivem mais e podem ter melhor qualidade de vida.
Erlane explica que as MPS “são um grupo de doenças que causam a falta de uma enzima e, por isso, o organismo não consegue quebrar algumas substâncias grandes, que se acumulam nas células, nos tecidos, e causam problemas do cabelo ao dedão do pé”.
Entre as complicações possíveis estão limitações articulares, problemas respiratórios e cardíacos, aumento do fígado e baço, e déficit neurológico, variando de acordo com o tipo.
No Ceará, a MPS tipo II predomina, com 35 casos identificados de 1982 a 2019.
A explicação do que é a doença pode ser simples, mas “os pacientes levam cerca de 4 anos rodando de médico em médico até conseguirem obter o diagnóstico, e chegam no HIAS muitas vezes de forma tardia”, como aponta a médica.
Uma das razões para isso é a lacuna no currículo das faculdades de medicina. “Tentamos modificar esse cenário a partir do ensinamento dessas doenças nas faculdades, para que os pacientes cheguem mais cedo ao tratamento. Quanto antes começar a medicação, mais efetiva será”, frisa Erlane.
crianças e adolescentes cearenses têm MPS hoje, de acordo com a médica geneticista Erlane Ribeiro.
Onde tratar a mucopolissacaridose
No Ceará, o centro de referência para doenças raras é o Hospital Infantil Albert Sabin (HIAS), que realiza exames e tratamento das condições. Para agendar consulta, é preciso recorrer à Central de Regulação do Estado – mas em caso de urgência no diagnóstico, existe a “vaga zero”.
“Como há pressa no diagnóstico, conseguimos a chamada vaga zero: o paciente não espera. Se está na Unimed, por exemplo, e o médico sabe que é uma doença rara, faz uma carta de encaminhamento e atendemos”, pontua a geneticista.
No Brasil, conforme a médica, há uma média de apenas 300 profissionais dessa especialidade, o que contribui para retardar o rastreamento da doença. Cerca de 5 mil pacientes com doenças raras já passaram pelo HIAS para tratamento.
Essas doenças são raras, mas existem: às vezes as pessoas não chegam aqui porque morrem antes esperando que um médico as veja.