“Bença, pai. Tomei a primeira dose. Pensei demais no senhor esses dias. Se a vacina tivesse chegado antes, o senhor ainda estaria aqui. Tenho certeza que te vi ontem, do lado da minha cama. Senti sua presença. Beijos na vó, no vô e nas tias. Te amo.”
Soltar um punhado de palavras de uma garganta entalada não dá alívio imediato. As frases-protestos em camisetas, plaquinhas e até nas máscaras tentam, mas o tempo entre a seringa encher e a vacina entrar no braço não é suficiente para a dor toda desaguar.
Nesses poucos segundos, porém, filmes inteiros rodam na cabeça. Na de Ítalo Gomes, 35, o protagonista era o pai, Raimundo Nonato Gomes, cujo último aniversário foi o 72º. Morreu de Covid perto do Natal. As luzes da ceia nunca mais lembrarão outra pessoa.
Na véspera do dia 1º de junho, porém, visitou o filho. Talvez quis pedir, uma última vez, para Ítalo “deixar pra lá”, como sempre fazia. Não protestar contra o governo. “Desculpe desobedecê-lo”, foi a resposta.
Como muitos cearenses, Ítalo soltou num cartaz aquele punhado de palavras, no Cuca do Jangurussu, em Fortaleza. Pelo pai morto, pela mãe sobrevivente da Covid. Continua entalado.
Epidemia cruzada
Já são quase 16 meses de tudo isso. É muito pouco tempo. Assim, muito e pouco, tudo junto. Muito pra tanta inquietação, pouco pro tanto de mães e pais que partiram de repente, de amigos que se foram cedo demais, de um negacionismo que se espalhou como o vírus.
Nessa epidemia cruzada de Covid e de ignorância, Karolina Sousa, 33, esteve na linha de frente, direto dos laboratórios de doutorado na área de ciências biológicas da Universidade Federal do Ceará (UFC).
Como mulher que “vive a ciência e sabe que ela é a chave de tudo”, sente crescer por dentro, todos os dias, enquanto trabalha na descoberta da cura de doenças, uma indignação que não sara.
No dia 19 de junho, quando se vacinou no município de Maranguape, expressou numa folha de ofício o respeito pela pesquisa e pelo Sistema Único de Saúde (SUS), que “teve a grandiosidade e importância reconhecidas agora, depois de uma pandemia”. Tentou ir com um jacaré estampado no peito, mas a empresa se recusou a fazer a camiseta.
Rir, ato de resistência
Laralise Lima, 33, porém, conseguiu. Em tempos de Brasil, onde as engrenagens do riso insistem continuar funcionando em meio à ferrugem, a professora vestiu-se de “jacaré fêmea” para tomar a primeira dose contra a Covid, no dia 2 de junho, na Arena Castelão.
O “mini protesto” expressado na roupa era uma teimosia. Afinal, como arranjar espaço para o humor quando os risos de mais de 520 mil brasileiros não vão ser mais ouvidos? A resposta foi dada por um deles, antes de partir: “rir é um ato de resistência”.
Para Lara, então, o meio mililitro do imunizante injetou no corpo, além de proteção, “esperança de dias melhores”, como ela mesma diz. “E de que todo o sofrimento que estamos vivendo vai diminuir”.