Quando Davi Sampaio pediu ao pai, pelo telefone, que 'pelo amor de Deus chamasse os bombeiros', eles já estavam chegando lá. Não saíram. "E não sairemos até a última pessoa, até a última vítima". É o que diz o comandante Coronel Eduardo Holanda em todas as coletivas. Da primeira entrevista, na terça-feira, à última da sexta, três dias após o desabamento do Edifício Andrea, é visível o cansaço. "Cansados, todos estamos, mas revigorados com o desejo de sucesso no resgate". Depois, virou um lema pronunciado por cada bombeiro: não vão sair 'até a última pessoa'; 'a esperança sempre existe'. 'Há chance de vida'.
"Eles fingem que estão no automático, mas é pra poder não parar. Eles são uns heróis", responde a psicoterapeuta Ana Tereza (teve ontem seu primeiro dia de voluntária), depois de ver o soldado Paulino, do Corpo de Bombeiros Militares, passar e ouvir a pergunta de outra senhora:
- Meu filho, você não se cansa não?
- A gente só vai parar quando tirar a última pessoa.
Na tarde de sexta, precisamente às 12h56, porque "cada minuto conta", pelo menos quatro pessoas ainda estavam desaparecidas. Meia hora antes, Paulino estava na casa de Dona Malu, 82 anos, na Travessa Benjamim, quase esquina com a tragédia (de sua porta se podia ver o prédio por inteiro). Pediu licença para entrar na casa da senhora com o isopor da quentinha com o almoço: um pedaço de bisteca, arroz, feijão, salada e macarrão. "A comida, ele quem trouxe, mas vem pra cá pra não ficar na poeira, no sol".
Sair para almoçar é fugir um pouco. Tenta. E pelo instante em que come, Paulino sai da cena em que está há três dias, apenas com as pausas para dormir em casa. Nunca viu uma situação dessas. "Nunca. A gente já mexe com sinistro. Já recolhi pedaços de gente na estrada, numa romaria. Tem três anos, resgatamos dois homens no poço lá no Siqueira. Desabamento, é a primeira vez".
Eduardo HolandaAs lajes estão sobrepostas de maneira muito intensa e isso dificulta a progressão. O estado físico de todos aqui é de cansaço e extrema energia positiva, no afã de procurar pessoas com vida
Comandante do Corpo de Bombeiros Militar
Carlo, filho de Malu, aumenta o volume da televisão na cozinha. No 'CETV', o âncora anuncia novas imagens que contradizem a versão do engenheiro da obra sobre não ter começado a recuperar os pilares no prédio: havia homens trabalhando minutos antes de tudo. Martelavam as colunas, deixando as ferragens expostas. Era o prenúncio.
Paulino encerra o almoço, observa a TV, mas logo levanta da mesa, deixa restos de comida para a cachorrinha da casa e sai de volta para os destroços. Continuaria o trabalho de resgate com os outros bombeiros de seu turno.
A seis metros dali, em frente ao Mercadinho Bom Jesus, atingido pelos escombros, onde vítimas foram soterradas, o Bombeiro Militar Alberto Couto serra com maquita uma das vigas de concreto, para tornar pedaços grandes em pequenos a serem recolhidos com a retroescavadeira para cima do caminhão - por dia, são mais de dez viagens até o aterro sanitário de Caucaia. Com o entulho erguido, a poeira sobe e desaba mais uma vez no lugar.
A esperança sempre existe e a gente se agarra nela. As orações das pessoas lá fora também estão nos ajudando
Soldado Couto
Bombeiro Militar
"Ele foi certeiro", diz, sobre o motorista que conseguiu manobrar a máquina para tirar uma boa quantidade de entulho para despejo. A saída do veículo é a deixa para ele continuar cortando ferro.
Com quatro anos de Bombeiro Militar, é a primeira vez de Couto em um desabamento como esse.
- Qual o tamanho do seu cansaço? Pergunto.
- A esperança sempre existe. Ninguém aqui vai parar até a última pessoa - com vida ou não. Mas há chance.
Esperança em mãos
Somados às dezenas dos mais diferentes agentes de resgate, os Bombeiros Militares, permanentes no alto dos destroços, com fardamentos laranja em contraste ao cinza de tudo, são a chance por cima da tragédia. A esperança é carregada em baldes por várias mãos. "Usamos ferramentas de menor impacto em locais em que a gente considere mais sensível", diz o comandante Holanda.
Entre tantos outros que estão diretamente envolvidos na operação de resgate, trabalham pelo menos 135 Bombeiros Militares. São de Fortaleza e região metropolitana. Alguns com 25 anos de atuação. Outros, como Waleska Costa, de 32 anos, estão no começo. Participava de um curso de resgate quando o desastre ocorreu. Por toda a semana, está vivendo o primeiro grande teste, que só acaba quando encontrar a última pessoa.
Sentir o outro
Entre terços e orações, pães, sucos, massagem, um colchonete, água ou apenas ouvidos para receber um desabafo, a rede de voluntariado que se coloca ao redor dos destroços do Edifício Andrea, mas sobretudo em torno da esperança de encontrar pessoas vivas, reuniu os diferentes desde o primeiro dia de tragédia.
"Tinha que ter, realmente, muitas pessoas aqui. Para sentir o que estou sentindo desde o primeiro dia. Sei que é ainda mais forte para os bombeiros, os socorristas, que estão lá no trabalho mais difícil. E do lado de fora também um trabalho lindo. Não tem como não sentir. Não tem como pegar um pedaço de entulho, de tijolo, e não ver que tudo aquilo que a família construiu perdeu. Principalmente as vidas, que não se recupera depois", desabafa Yala Lepaus, 44 anos, técnica em segurança do trabalho. Soma-se aos muitos anônimos em meio ao caos em busca de calma - e vidas.
Na tarde de ontem, mais uma troca de turno da equipe da Cruz Vermelha. Aritene chega e se emociona com as orações do grupo de mulheres pedindo por mais boas notícias. Mais de 25 anos socorrendo vítimas, em tão diversas situações, mas o que tira de toda experiência é que cada missão parece a primeira.
"Isso aí, e primeiro Deus, é o que nos mantém. O que a gente tem que pensar e fazer é acreditar que é sempre possível ter sobrevivente. É não parar. Não parar, entendeu? Não parar".