O pequeno Arthur Santiago Marques foi forte. Ao longo dos seus 3 anos, 4 meses e 20 dias, lutou contra um vírus que acometeu sua mãe durante a gravidez, bactérias que atingiram seu pulmão por complicações de saúde e, até depois do seu último momento, pensou-se que lutava contra o novo coronavírus.
Isso porque Inamá Araújo Santiago, de 32 anos, só veio ter a certeza de que o filho não havia falecido pela Covid-19 três dias após tê-lo enterrado nu, dentro de um caixão pequeno, sem a possibilidade de tocá-lo, cheirá-lo ou niná-lo nos braços - algo comum para uma mãe, especialmente daquelas que criam crianças com Síndrome Congênita do Zika Vírus, doença que provoca, dentre outras consequências, a microcefalia.
"Foi desumano o que fizeram com a minha criança", conta Inamá
Arthur faleceu no dia 31 de março, seis dias após dar entrada em um hospital privado de Fortaleza. Com sintomas similares à infecção pelo coronavírus, a criança foi tratada na unidade de saúde como se pudesse estar acometida de três possíveis doenças: pneumonia, H1N1 ou Covid-19.
Na noite em que lá chegou, na quinta-feira (26), o exame para detecção da presença do novo coronavírus foi realizado. Já na madrugada de sexta-feira (27), porém, seu quadro foi piorando. Ele deu entrada na Unidade de Terapia Intensiva (UTI) e, a partir daquele momento, às 3h30, Inamá e Arthur não tiveram mais qualquer contato físico.
Isolado, as visitas se tornaram mais restritas. Só podiam entrar na UTI, mãe e pai, diariamente, durante 1h30. A observação do filho, porém, só por meio de uma vidraça. No domingo (29), Arthur foi entubado e "dali eu percebi, como mãe, que meu filho já não estava mais ali. Pedi a Deus que não deixasse ele sofrer, que fizesse o melhor por ele, apesar de me doer muito", relata Inamá. Até a noite de terça-feira (31), o quadro de saúde da criança piorou consideravelmente, e Arthur veio a óbito.
A perda
"Implorei para que eles me deixassem chegar perto do meu filho mais uma vez, pela ultima vez, mas não me deixaram, disseram que não podia, que era regra, que era norma, que estavam seguindo protocolo. Eu tive que aceitar", narra Inamá
"Meu filho passou naquela maca, no corredor. Disseram: 'mãe, ele vai passar aqui, e a senhora não pode nem chegar perto dele'". Inamá ouviu. E calou-se, seus olhos diziam mais do que qualquer palavra que pudesse ser dita naquele momento.
Além da perda do caçula, a família teve que desembolsar, em quatro hora e meia, R$ 2.900 para o funeral. Não poderia haver velório, e poucas pessoas deveriam estar no momento da despedida. Inamá até levou uma roupa para vestir o filho, que estava nu durante o período que ficou na UTI. Mas recebeu a negativa: 'mãe, a gente não vai tocar no corpo do seu filho, ele vai ser enterrado do jeito que ele esta na capela', escutou de um agente funerário.
"Mais uma vez, me vi revoltada, indignada. Entrei no carro e fui acompanhando o corpinho dele até o cemitério. Nem sequer pegar na alça do caixão nos foi permitido".
O quadro
Desde o princípio, Inamá sabia que Arthur poderia ser prejudicado pelos efeitos da pandemia do novo coronavírus. Por isso, fortaleceu os hábitos que já seguia em casa e os estendeu a todos os membros da família. Mas, a confirmação de que a criança não morreu por Covid-19 foi, segundo a mulher, um alívio. O pequeno faleceu em decorrência de uma pneumonia, a sétima que teve durante a vida.
"Primeiro, pelo meu filho porque não foi acometido por mais um vírus; segundo, pela minha familia, pelo meu esposo que pôde voltar a trabalhar; e também pela minha filha mais velha, pois ela quem apresentou os primeiros sintomas aqui em casa, teve gripe, coriza, tosse e um pouco de febre. Ela sentiu muito a pressão".
Lembranças
Na memória de Inamá, fica mais do que os bons momentos e as lutas pelas quais ela e Arthur passaram juntos.
"O fato de ele ser uma criança especial me trouxe tantas coisas boas. Eu aprendi tantas coisas com meu filho. Eu aprendi o que é um amor puro, verdadeiro e sincero. Eu aprendi mais com ele, do que ele comigo", assinala.
Com veemência, a mãe em tempo integral acredita que a dor que carrega ficará pelo resto da vida, mas ela tem a certeza de que, ao lado desse sentimento, está o de missão cumprida. O arrependimento de não ter feito algo nem passa pela cabeça de Inamá, ela sabe que se doou, se entregou e viveu cada momento de Arthur durante os 3 anos, 4 meses e 20 dias de sua passagem.
"Não me arrependo de nada do que eu fiz e nem tenho que me arrepender do que não fiz. Ele está num lugar melhor do que eu. Ele é um anjo. Ele está correndo, brincando, lá ele não tem limitações. Ele não está precisando de todos os aparelhos que eu tinha aqui na minha casa para sobreviver. Então, isso acalenta meu coração.
Procedimentos
A Secretaria da Saúde do Ceará (Sesa) informou que o exame de testagem para o novo coronavírus da criança deu negativo. Contudo, ele foi realizado por uma clínica particular e não no Laboratório Central de Saúde Pública (Lacen), do Governo do Estado. A reportagem não conseguiu contato com a clínica responsável pelo exame.
Nota técnica publicada pela Sesa, no dia 27 de março de 2020, sobre os procedimentos relacionados aos óbitos decorrentes à nova infecção viral recomenda que, durante o período da pandemia, "corpos de óbitos suspeitos ou confirmados de Covid-19 sejam sepultados com a maior brevidade possível, a fim de evitar manuseio prolongado do corpo e aglomerações em torno do mesmo". O texto ainda informa que os serviços funerários funcionam 24h por dia, de domingo a domingo, e fica vedado "o velório em qualquer circunstância".
Em coletivas de imprensa online realizadas durante esta semana, o secretário da Saúde do Ceará, Carlos Roberto Martins Rodrigues Sobrinho, o Dr. Cabeto, e a secretária executiva de Vigilância e Regulação da Sesa, Magda Almeida, têm dito que o Estado realiza cerca de 400 exames por dia, mas ressaltam que a demanda ainda é muito grande.
De acordo com os gestores, até a próxima semana, o Ceará realizará cerca de mil exames por dia. Conforme a plataforma digital IntegraSUS, do Governo do Estado, que atualiza os casos da Covid-19 em tempo real, foram realizados, até às 17h desta sexta-feira (10), 6.462 exames para detecção do novo coronavírus. Houve a confirmação de 1.558 casos e 67 óbitos em razão da doença.
Grupo de risco
Conforme o neurologista André Pessoa, do Hospital Infantil Albert Sabin, que atua no tratamento de crianças com Síndrome Congênita do Zika Vírus, os pequenos fazem parte do grupo de risco da Covid-19.
Além de problemas de mobilidade, por conta de as crianças estarem normalmente acamadas, ou em cadeiras de rodas, o médico afirma que o aspecto mais preocupante nesse momento é a disfagia. Uma dificuldade que o paciente com zika vírus tem para deglutir um alimento, o qual, algumas vezes, não desce para o estômago, mas para as vias aéreas.
"Ou seja, todo o processo da mastigação, do movimento da língua e do alimento descer para o seu local correto. Todas as crianças com zika disfagia em maior ou menor grau e, por isso, muitos pacientes fazem bronquioaspirações para retirar o alimento que vai para as vias aéreas", explica o neurologista.
Cuidados
Além da disfagia, André Pessoa também pontua que há casos de desnutrição por causa desse problema na deglutição dos alimentos e 70% das crianças acometidas pela Síndrome apresentam epilepsia. Por essas questões, o médico diz que as famílias precisam ter cuidado redobrado durante a pandemia do novo coronavírus.
Como cuidados, o médico indica que os pais devam se manter em quarentena dentro de casa, a menos que sejam de serviços essenciais. "Se alguém precisar sair, esse indivíduo tem que se proteger ainda mais, com máscara, lavar as mãos com mais frequência, deve evitar entrar com calçados em casa, tirar as roupas usadas na rua e colocar pra lavar imediatamente", pontua.
André também acrescenta que, nessas famílias, em qualquer sinal de febre ou problemas respiratórios, a criança deve ser isolada imediatamente. E, dentro de casa, os contatos com elas devem ser feitos por pessoas usando máscaras.