Nunca nos conformamos com pedaços. Queremos sempre inteireza, completude: é nosso jeito avesso a fragmentos. Porque, a bem da verdade, estar ao meio quase sempre maltrata. Dói. Como quando alguém querido vai embora ou deixamos ir algo que gostamos muito. Ou quando observamos as coisas que poderiam ser melhores e não são, nem são fáceis de se tornar. Nesses casos, é uma parte do coração que também segue, se dilui. A vida parece menos colorida, torna-se opaca. Caminhar adiante vira desafio e fadiga. Vira deserto.
Mas alguém um dia escreveu que o amor, além de servir para a perpetuação da espécie, protege da esterilidade e das solidões mais fatais. O ódio, apesar de maior, mais tentacular, sucumbe. O amor é que tem propósito. E dar-se conta dos mosaicos em nós é prova concreta desse sentimento complexo e simples. Somos feitos de vários, dos estilhaços que tantas vezes menosprezamos ou julgamos não ser de nosso feitio. Em busca de uma ilusória totalidade, quebramos o pacto com o espírito uno da humanidade: sem o outro, tornamo-nos apenas matéria seca e bruta. Selvageria e silêncio.
Então, nesses dias em que as horas são semanas e os meses são anos, num incômodo redemoinho temporal, percebo-me escutando, com maior afinco, os eus aos quais pertenço. São vozes ora interiores, ora carregadas de um presente lá fora. Me tranquilizam. Consigo me visualizar correndo para o mar, nessa ânsia de onda, típica de um menino sedento de mundo; em breve instante, acordo e ouço dona Fátima, minha vizinha, cantarolar para a neta, feito minha mãe também cantava para mim em noites de ventania; olho para o lado e, ao leve toque no encosto do sofá, percorro memórias dos lugares em que estive e tornaram-se lar, domicílio que convida a uma prosa ou a um verso.
Também me conecto com o gari que passa atordoado às terças, quintas e sábados na rua, carregando as pesadas sacolas pretas encostadas nas calçadas; com a costureira, que sai de casa de mansinho e com cuidado, só para comprar mais um tubo de linha e completar a produção das máscaras que passou a confeccionar; com os médicos, de semblante calmo e coração intranquilo, a tentar minimizar os impactos e disseminar a cura. O bem.
Olho para o céu, confidente irrestrito, e ele testemunha a grata sensação que brota no peito pela minha percepção de que todos esses pedaços de gentes, sementes e universos, sou eu também. Sou colagem única e insubstituível dos passos que, enquanto humanidade, atravessamos juntos.
Se o amor é que tem propósito, é imperativo amar a herança que o outro nos deixa por meio do que ele representa. Isso exige respeito e empatia, consciência e responsabilidade. E, de alguma forma, apazigua os momentos de dor e tristeza, os quais parecem ter se tornado expediente diário: nós não estamos sozinhos. Somos muitos.
Por que devemos acreditar em dias melhores? Talvez porque nós é que estamos a vivê-los e temos esse poder irrestrito de fazer novas todas as coisas, ver o mundo pelos olhos das pessoas em nós. Assim, quando a realidade corroer e fraturar, lembremo-nos da doce porção da vida, aquilo que dá sentido a ela: o outro, essas conexões, essas comunicações. Esses saberes sadios que vão se disseminando e alargando a existência. Fazem dela diferente. Menos opaca, feito outrora. Iluminada.
Quero correr para o oceano da maneira de eu-menino e cantarolar para alguém dormir. Quero repousar nos móveis com aroma de conversa e recolher os resíduos que descansam nas esquinas de minha história. Quero costurar afetos e curar pela dedicação. E viver, em plenitude, crente do presente-futuro construído a muitas mãos e feito de muitos olhares. Dar-me conta de meus pedaços para construir a arquitetura do meu todo – tão fracionado e, por isso, tão belo.