Chegar a um restaurante desejando comer um prato, ver algo diferente no cardápio e mudar de ideia. A situação pode parecer comum, mas não é opção para pessoas cegas ou com deficiência visual no Ceará – onde a acessibilidade mora apenas no papel das leis.
Neste 8 de abril, Dia Nacional do Sistema Braille, o Diário do Nordeste conversou comum professor cearense cego para questionar sobre as experiências dele em bares, restaurantes, hotéis e outros estabelecimentos similares. Ele resumiu: “é constrangedor”.
A Lei Estadual nº 16.712 determina que bares, restaurantes, hotéis e similares ofertem cardápios, menus, tabelas de preços e outros meios informativos transcritos em braille. Sancionada em dezembro de 2018, a norma dava um prazo de 4 meses para adaptação.
Na prática, contudo, “pouquíssimos locais têm cardápios em braille, e quando têm, às vezes estão desatualizados ou os funcionários nem sabem”, como relata o professor João Bosco Farias, cego há 18 dos 37 anos de vida.
A norma não prevê nenhuma sanção em caso de descumprimento e não há fiscalização. A lei, destaca João Bosco, também não considera a diversidade que há entre as pessoas cegas ou com deficiência visual.
Não é todo cego que sabe braille. Há pessoas com baixa visão que não aprenderam, por exemplo. Precisamos pensar em cardápios acessíveis de várias formas. Só a pessoa cega tem dificuldade? E o surdo, alfabetizado em Libras?
Bosco aponta ainda que “a transcrição pro braille é cara pra fazer, e a durabilidade do cardápio seria bem menor, já que não pode ser plastificado”. Uma alternativa mais acessível, ele sugere, seria o cardápio digital, iniciativa ampliada pela pandemia, e não por questões de acessibilidade.
O professor analisa ainda que não só pessoas com deficiência, mas as analfabetas, por exemplo, também são prejudicadas. Um fator que minimizaria todas essas barreiras seria a atenção por parte de colaboradores dos serviços – itens cada vez mais escassos no dia a dia.
Chega a ser constrangedor. O garçom, na correria, precisa parar e ler o cardápio pra gente. Você percebe, na voz, o semblante de insatisfação. Há locais que têm tudo de acessibilidade, mas as pessoas não te dão atenção. De que adianta?
“Só queremos ter a oportunidade que todos têm: chegar pensando em comer um sanduíche, ver algo mais interessante no cardápio e optar por experimentar. Ter a chance de mudar de ideia”, destaca Bosco.
Como denunciar abusos na relação de consumo
Pessoas com deficiência (PCD) visual ou de outros tipos que se sentirem lesadas em relações de consumo, como no caso de bares e restaurantes não-acessíveis, podem (e devem) denunciar o caso ao Decon/CE, aos conselhos municipais e estadual e à OAB/CE.
Quem orienta é Emerson Damasceno, presidente da Comissão de Defesa da PCD da OAB/CE e coordenador municipal da PCD da Prefeitura de Fortaleza. “E quando se tratar de crime, pode recorrer à delegacia especializada”, complementa.
A legislação é bem-vinda para agregar direitos, mas além dela precisamos de que as pessoas com e sem deficiência denunciem, e que haja fiscalização do poder público, pra que a legislação existente seja praticada.
Barreira atitudinal
Emerson destaca também que “algumas leis dão a falsa impressão de que está tudo certo”. “Os comerciantes podem pensar ‘tenho o cardápio em braille, então pronto’. Mas há o piso tátil, a barreira atitudinal. Acessibilidade é segurança, conforto e independência”, descreve.
A “barreira atitudinal” citada pelo advogado se refere justamente ao comportamento da sociedade em relação às PCD, que deve refletir nos prestadores de serviço.
“É fundamental que o próprio comerciante entenda que a inclusão traz uma parcela de mais de 20 milhões de brasileiros para o mercado consumidor. Muitos não se deslocam a um estabelecimento se não tiver acessibilidade física e atitudinal”, finaliza Emerson.
Fiscalização
A reportagem questionou o Governo do Estado sobre a vigência, na prática, da Lei Estadual nº 16.712, cujo texto não explica a cargo de quem fica a fiscalização, mas não houve resposta.
Taiene Righetto, presidente da Associação Brasileira de Bares e Restaurantes no Ceará (Abrasel/CE), aponta que fatores como custo e escassez de profissionais para transcrição do cardápio em braille tornam a disponibilização “inviável”.
Com a inflação, o preço dos insumos muda e é preciso alterar o cardápio. Imagine toda vez ter que fazer uma versão em braille? É caríssimo, complexo e muitas vezes inviável.
O gestor critica que “principalmente para bares e restaurantes, se faz a lei mas não se verifica a possibilidade de cumprimento”. “Em relação à acessibilidade, sempre foi muito bem feita. Deficientes visuais são muito bem atendidos, com respeito e consideração. Os colaboradores são muito bem instruídos quanto a isso”, garante Taiene.
O presidente da Abrasel destaca ainda que poucos deficientes visuais vão a bares ou restaurantes sozinhos, "até pelas condições das vias e calçadas, arriscadas até para quem exerga".
Onde denunciar
- Agefis – Agência de Fiscalização de Fortaleza
Contato: 156, site (clique aqui) ou Aplicativo Fiscalize Fortaleza. - Decon – Programa Estadual de Proteção e Defesa do Consumidor
Contato: (85) 98685-6748
E-mail: deconce@mpce.mp.br - Delegacia de Proteção ao Idoso e Pessoa com Deficiência
Contato: (85) 3101-2496
Endereço: Rua Professor Guilhon, 606, Bloco D, bairro Aeroporto. - OAB – Ordem dos Advogados do Brasil – Secção Ceará
Contato: PABX - (85) 3216-1600 ou WhatsApp - (85) 3216-1600
Dia Nacional do Sistema Braille
A data, marcada em 8 de abril, lembra o nascimento de José Álvares de Azevedo, primeiro professor cego do Brasil, que trouxe da França, ensinou e divulgou o sistema de leitura e escrita usado por pessoas cegas e com deficiência visual, criado há quase 200 anos.
O dia, como destaca o Ministério da Educação, “propõe uma reflexão sobre os desafios enfrentados pelas pessoas cegas e a importância de continuar a produzir obras em relevo, para proporcionar a elas iguais oportunidades de ler e aprender”.