Há presentes baratos, caros, grandes, pequenos, raros, comuns. Com data especial ou sem motivo, em papel pardo, colorido ou sem embalagem. Desejados, devolvidos. E há pessoas-presentes. Vidas cativantes a ponto de serem, em si, dádivas, esperança diante da dureza dos tempos.
Neste Natal, o Diário do Nordeste, que conta inúmeras histórias todos os dias, resolveu embrulhar algumas das mais bonitas e entregá-las a você no especial “Histórias de Presente”. Serão três, ao todo, daquelas que “deixam o coração morninho”, como dizem por aí. É só uma lembrancinha nossa – mas é de coração.
Vamos começar, então, por Chicão.
As expressões se montam no rosto em sintonia com as palavras. Espanto, alegria, tristeza, indignação. Está tudo ali, nas linhas faciais desenhadas pelos “53 anos bem vividos” de Chicão Oliveira – cria da Barra do Ceará, na periferia de Fortaleza, que mudou com as palavras o curso do próprio destino.
“Minha mãe teve muitos, muitos, muitos filhos. Comigo, foram 22. Como educar, criar e cuidar de tanto menino? Por sorte, tínhamos as ruas, e as brincadeiras iam brotando. E de cada aventura saía uma grande história”, relembra.
As vivências lapidaram a criatividade – e a casa inteira virou arte. Aos 8, 9 ou 10 anos, ele não sabe precisar, Chicão foi palhaço. Um amigo, trapezista; as sobrinhas, dançarinas; um dos irmãos, apresentador. E o galpão ao lado da casa “imensa” onde ele nasceu virou um circo.
“Acho que a pegada mesmo pra eu seguir esse caminho foi quando a gente criou esse circo lá em casa. Foi a maior apoteose da minha infância”, relembra, imitando, como se voltasse no tempo, o “rrrrrrespeitável público!” que iniciava as apresentações.
Já na adolescência, com o sangue artístico irrigando as veias, se empolgou com o movimento estudantil. Assumir o palanque para amplificar a voz dos colegas, então, era ordem – mas ele decidiu que os discursos seriam diferentes. As falas viravam poemas.
É como se Chicão fosse um novo Rei Midas – enquanto este, no mito, transformava em ouro o que tocava, o cearense fazia brotar arte de tudo. “Eu torço Ferroviário, e se ele jogar com o Barcelona e eu narrar o jogo, ele ganha”, brinca.
Fiz um curso de teatro do José de Alencar e estourou o Fora Collor. Na manifestação, puxava a galera cantando, incluindo o teatro do absurdo no meio. Aí o destino me jogou no Curso de Artes Dramáticas da UFC. No final, me bateu uma profunda melancolia: o que eu ia fazer da vida?
“Não tinha nada”, ele conta. Nada, nenhuma perspectiva de que poderia viver de arte. Logo ele, vindo da periferia. Logo ele, que, em breve, se tornaria pai. “O que me instigou a contar histórias foi o surgimento da Estrela na minha vida. Minha filha. A menina era pequena, comecei a contar e um dia ela me disse ‘pai, essa história é boa!’. Ela nem sabia que era a primeira história que eu tinha criado”, emociona-se Chicão.
De gari a catador de histórias
Com a necessidade de sustentar a família, Chicão guardou no bolso a vida pela arte e ingressou na Prefeitura de Fortaleza como gari. Recebeu farda e vassoura, mas nunca usou. A habilidade com a máquina de escrever e com a comunicação conquistou o chefe, que logo o promoveu a assistente.
Da atividade na gestão pública, foi parar no sindicato. “Só aceitei ir como diretor cultural”, frisa, em mais um episódio em que tocou em algo e transformou em arte. O sorriso fácil, a expressividade e a decência, por certo, escancararam as portas do mundo – e do sindicato foi parar na Biblioteca Municipal Dolor Barreira. Seria o primeiro contador de histórias de lá.
Eu sou um funcionário público, sou gari, meu contrato na prefeitura é como gari há 32 anos. Meu pai foi um dos primeiros garis de Fortaleza. E eu tô num desvio de função, e há mais de 15 anos tô aqui na biblioteca. Sou um gari catador de histórias.
Chicão, hoje, espalha as próprias histórias e as de diversos escritores para plateias de todos os cantos, todas as idades e origens. No dia em que conversamos, uma turma de dezenas de crianças encheu o auditório de gargalhadas agudas com as caretas, danças e anedotas do artista. Artista.
“Eu tenho uma missão de desconstruir o bullying, de brincar com os cabelos – porque cada um tem um cabelo que é só seu e a sua identidade –, de usar a história da ‘roupa da zebra’, de Demitri Túlio, pra falar de sexualidade. Por que a zebra tem que vestir só preto e branco, e não usar outras cores, ser diferente?”, ilustra sobre o sentido da profissão que exerce.
Nada é solto. Não conto história só por divertimento ou pra ganhar um cachê. Quando o convite me agrada, vou até sem cachê. Se não me agrada, nem com cachê eu vou.
A devoção despretensiosa aos versos, estrofes, imagens, risos e choros que compõem uma narrativa parece mesmo ser coisa de sangue. Estrela, filha de Chicão e existência que o incentivou a viver da imaginação, declama poesias e “roda o chapéu” em ônibus pela cidade.
É com Estrela, aliás, que o pai renova o repertório de sentimentos e vivências indispensável para criar. Com Estrela, que ilumina os olhos de Chicão há 18 anos, toda conexão vira poema. “Todo dia eu pergunto a ela ‘e aí, o que foi que tu sonhou?’ Os sonhos guardam muitas histórias.”
Ninguém nasce um contador de histórias, a gente vai assimilando, juntando, coletando, partilhando, ouvindo. E sempre que escuta, a gente aprende novas histórias e vai aprendendo com as pessoas.
Histórias de presente
Questionar a um colecionador de narrativas qual a preferida, a mais marcante, a mais bonita é, talvez, como perguntar a uma mãe qual o filho preferido. “As Travessias do Menino Chicão” foi a primogênita, “mudou tudo” – mas “A velhinha que dava nome às coisas”, de Cynthia Rylant, é a que salta à memória.
“A Creuza estava hospitalizada, tinha acabado de sair da UTI em estado de despedida. Cheguei no hospital do câncer e todos os familiares estavam chorando. Mas ela disse no meu ouvido: ‘vou durar 180 anos’. Saí de lá e fui organizar uma festa pra ela sair do hospital, e a festa foi com essa história. A Creuza era dura de morrer”, brinca.
Creuza é a mãe de Chicão, que ele chama pelo nome, “porque ‘mãe’ todo mundo chama”. Talvez tenha sido com ela que aprendeu a importância do nome. “Creuza significa a mulher da partilha, da multiplicação, da comunidade. E assim foi minha mãe.
Toda contação de Chicão, então, inicia perguntando o nome de cada participante. “Conhecer as pessoas pelos olhos e pelo nome é fundamental para contar histórias”, explica o cearense sorridente, que faz graça de tudo.
O sorriso só diminui e o tom pesa um pouco mais quando usa uma fábula para responder: que história você gostaria de dar de presente a quem vai ler a sua história, Chicão?