Ir à escola todos os dias é, para muitos, uma atividade de rotina. Para outros, é um risco. Uma pesquisa realizada com quase 500 estudantes do ensino médio público de Fortaleza comprovou: a violência fora das salas de aula impacta diretamente a vida escolar.
Os efeitos são reconhecidos pelos próprios jovens: entre 497 entrevistados, mais de 200 (42,5%) confirmaram que a violência interfere e prejudica as formações escolares e educacionais.
A conclusão veio após entrevistas com adolescentes e adultos (14 a 24 anos) de 12 escolas do Grande Bom Jardim (GBJ), que engloba os bairros Bom Jardim, Granja Lisboa, Granja Portugal, Canindezinho e Siqueira.
Para a maioria deles, os principais impactos de um entorno violento para a educação são a quebra de um ambiente de paz, prejuízos às condições emocionais e aumento do medo.
O estudo – que será lançado nesta segunda-feira (22), mas foi adiantado ao Diário do Nordeste – foi realizado em cooperação entre o Centro de Defesa da Vida Herbert de Souza (CDVHS), localizado no GBJ; e grupo de pesquisa e laboratório vinculados à Universidade Federal do Ceará (UFC).
João Paulo Barros, coordenador da pesquisa, do Vieses e professor de Psicologia da UFC, avalia que essa violação de um direito básico, que é a educação, já é um reflexo de outras diversas faltas – e que, por isso, é inadmissível rotular o Grande Bom Jardim negativamente.
“O Bom Jardim é muito marcado por violência, mas não é culpa dele: é resultado de um conjunto de ausências de políticas. E isso vem marcado também por muita luta. O território, a despeito da violência que o marca, se organiza politicamente pra dizer que não tolera isso”, frisa.
Escola sob risco
Na pesquisa, feita em setembro do ano passado, foram abordados 3 principais eixos: violências sofridas pelos alunos; percepção deles sobre a segurança pública; e efeitos disso na trajetória escolar.
Quando questionados sobre os tipos de violência e os locais mais frequentes onde elas ocorrem, os jovens colocam a escola em 2º lugar como espaço de maior risco, atrás apenas do bairro em si. Por outro lado, a reconhecem como espaço de proteção.
De acordo com o estudo, “a escola é um espaço com certa ambiguidade na percepção de segurança, pois apesar de mais da metade dos respondentes indicarem como um local seguro (54,13%), mais de 3 em cada 10 a consideraram insegura (38,23%)”.
Outro dos dados mais alarmantes apontados pela pesquisa foi que 84,5% dos alunos afirmaram ter presenciado tiroteios nos próprios bairros, e 82,7% disseram já ter visto pessoas sendo assassinadas.
Considerando as diversas situações de violência – como tiroteio, pessoas sendo expulsas de casa, operações policiais violentas, roubo e comércio de drogas –, uma média de 7 a cada 10 jovens já foram testemunhas.
Para Caio Feitosa, sociólogo e coordenador adjunto da pesquisa pelo CDVHS, “é muito grave ter toda uma geração formada num contexto de absoluta violência, e as repercussões subjetivas e sociais a gente nem consegue dimensionar”.
Violência x educação
Ana*, 15, fala com propriedade. Ela cursa o 2º ano do ensino médio numa escola do Grande Bom Jardim, e enfrenta um ato básico como maior obstáculo ao corpo e à mente, todos os dias: caminhar até a unidade escolar.
“O percurso é muito perigoso, de assalto mesmo. Já pensei em cortar caminho, mas não tem como, e eu vou sozinha. Já sofri assédio várias vezes. Quase sempre, na verdade”, desabafa, a muito custo, com dificuldade de compartilhar a violência sexual cotidiana.
dos estudantes apontaram a violência sexual como a mais frequente sofrida por eles – e mais de 4% preferiram não responder se já sofreram, o que a pesquisa aponta como sinal de subnotificação.
O prejuízo de aspectos emocionais e subjetivos são os mais reconhecidos pelos alunos como efeitos da violência que pula os muros e invade o cotidiano das escolas: a falta de um “ambiente de paz”, para os jovens, é a mais grave.
Como a violência interfere na educação, segundo os alunos?
- Atrapalha o ambiente de paz;
- Atrapalha condições emocionais;
- Causa medo;
- Compromete as relações sociais;
- Dificulta a concentração;
- Perda de aulas;
- Atrapalha o estudo em casa;
- Atrapalha professores;
- Obriga a interromper os estudos;
- Proíbe de ir à escola;
- Impede participação em atividades na escola.
A situação é pior para estudantes indígenas, negros e LGBTQIA+ – estes últimos, aliás, sofrem o dobro de assaltos, furtos, ameaças e agressões do que os heterossexuais, e cerca de 3 vezes mais tentativas de homicídio e violências sexuais.
Agravamento da violência
O sociólogo Caio Feitosa, do CDVHS, afirma que a interferência da escalada da violência armada e da atuação de organizações criminosas no Ceará “está maior do que em outros contextos”, impactando até “no acesso e na permanência do aluno na escola”.
“Há estudantes sendo ameaçados, impedidos de acessar a escola. Professores também. Existe uma rotinização, uma violência cotidiana, que interfere na visão que os alunos têm do seu próprio território, das relações”, lamenta.
Enquanto Ana* sofre violência no caminho e vê “colegas faltando aula por causa disso, até porque os responsáveis têm medo de deixar eles irem”; João*, 16, aluno do 2º ano de outra escola da região, já precisou mudar de instituição para continuar estudando.
Eu estudava em outra escola, de outro território, e as facções não me deixaram continuar lá. Se eu não tivesse saído, talvez nem estaria aqui contando essa história. Tem alunos que não conseguem chegar cedo porque não podem ‘passar’ em certo horário.
As ausências amargadas pelos jovens e pelo Grande Bom Jardim, aliás, podem gerar uma espécie de efeito dominó, perpetuando desigualdades entre as gerações.
“O acesso à educação de qualidade é uma das condições que possibilitam transformações sociais na vida desses adolescentes: alcançarem uma posição social mais favorável, ascensão profissional, direito à cidade, à vida. A falta disso torna as oportunidades muito mais desiguais”, pontua João Paulo Barros.
O que é preciso fazer
Após a divulgação oficial do estudo, que contou com parceria da Secretaria da Educação do Ceará (Seduc), os pesquisadores esperam que haja uma movimentação do poder público para montar e praticar estratégias de fortalecimento das escolas.
“Fazemos essa pesquisa para influenciar política pública. A política de educação precisa melhor entender esse território, construir políticas dimensionando os marcadores de diferença, pra que se gere proteção”, cita Caio.
É necessário um conjunto de políticas para que os estudantes tenham plena condição de aprendizado, as violações dos direitos humanos não entrem na escola e, com isso, a gente atinja melhores índices educacionais e diminua desigualdades.
O sociólogo reforça, ainda, que “a pesquisa foi feita no Grande Bom Jardim, mas certamente retrata os contextos de outros bairros e cidades”, de modo que os resultados precisam ser olhados com rigor ainda maior.
O professor João Paulo Barros acrescenta que “a pesquisa sinaliza uma condição de presença muito intensa e diversa da violência na vida desses adolescentes, fruto de um contexto histórico e estrutural de desassistência, opressões e violações”.
“Essa violência não brotou naquela realidade: a realidade foi abandonada e fragilizada institucionalmente. É preciso fortalecer a escola como espaço de proteção, porque a despeito de todas as violações que a atravessam, ela ainda aparece como um dos únicos espaços que conseguem produzir uma relação de pertencimento”, finaliza.
A reportagem questionou a Seduc sobre o que a Pasta pretende fazer, a curto e médio prazos, para trabalhar os pontos revelados pelo estudo; e que estratégias já existem nas escolas do GBJ e demais da rede estadual.
A Pasta informou, por meio de assessoria de comunicação, que só teria fonte disponível para entrevista nesta segunda-feira (22).
*Nomes fictícios. Devido ao tema sensível, a identidade dos estudantes foi preservada.