A portaria que cruzou durante anos na adolescência virou, hoje, portal para uma das grandes obrigações da vida adulta: escolher o prefeito da cidade. A cada dois anos, Sanatiel Araujo, 27, tem as eleições como desculpa para voltar no tempo: desde que emitiu o título de eleitor, definiu a antiga escola como local de votação. E “não tem coragem” de mudar.
Já faz quase 10 anos que o ciclo da rotina de ensino médio no Liceu Estadual Prof. Domingos Brasileiro, no bairro Planalto Ayrton Senna, foi encerrado – mas nunca passou. Uma escolha que, a priori, foi logística, hoje é oportunidade para reencontros.
“O dia de votar é sempre nostálgico, primeiro por exercer o dever de cidadão, mas também poder relembrar alguns momentos, entrar no colégio, ver o que mudou e o que não mudou, a sala onde eu estudei… São muitas recordações”, revela o jovem.
No passeio pelos corredores até a seção eleitoral, Sanatiel esbarra com “muitos amigos e alguns professores”, e a conversa sobre “como tá a vida, o trabalho e a família” logo se transforma num encontro entre passado, presente e futuro.
“A gente relembra coisas do passado, o quanto a gente era birrento, não deixava o professor dar aula”, ri Sanatiel. “Por coisas da vida, ela vai levando a gente pra outros lugares e distanciando do bairro em si. Mas volto e é sempre um grande evento como cidadão e pelo lado emocional”, conclui o jovem.
Mas já pensou em transferir o título para um local mais próximo?
“Já pensei, sim, mas me pega esse lado de rever os amigos, ex-professores, relembrar os momentos. Comer um salgado por lá. É um lugar que me traz boas recordações, um colégio eleitoral grande e confortável. Não tenho essa coragem (de mudar) ainda.”
‘Reencontro quem me viu crescer’
As raízes com o bairro Joaquim Távora, onde nasceu há 32 anos, seguem fincadas sem abalo para a contadora Gessica Leitão. Além da mãe e das tias que ainda vivem lá, ela faz questão de manter o título de eleitora vinculado ao colégio onde estudou e cresceu, mesmo morando, hoje, no Parque Manibura.
“É um momento pra mim de rever meu bairro, rever algumas pessoas, almoçar com a minha mãe, ir no colégio que eu estudei, na pracinha ao lado da minha casa. Não pretendo mudar. Tem pessoas que eu só encontro lá, no colégio, em época de eleição”, descreve Gessica.
Mesmo o colégio eleitoral sendo lotado, demoro 1 hora pra votar, não penso em mudar, por causa do vínculo que tenho com o bairro, com o local. Vai além do voto em si. É um momento de reencontro.
Assim como Sanatiel, Géssica vivencia, a cada pleito, uma mescla entre o ontem e o hoje. “Reencontro vizinhos da época, as pessoas mais idosas, pessoas que me viram crescer, amigos da minha mãe…”, pontua.
Os domingos cívicos, então, se enriquecem de sentido. “A eleição tem, sim, um cunho importante, mas a parte de confraternização e recordações é muito legal. Entro no colégio onde eu treinava, estudava. Toda eleição reencontro alguém e ‘ah, tu lembra tal coisa que aconteceu aqui?’”, anima-se.
‘Tem um ar mais pessoal’
Se há quem cruze bairros até o local de votação, Lucianne Souto, 41, viaja por cerca de 4 horas – sai de Fortaleza, onde nasceu, para o município onde morou na infância, Monsenhor Tabosa, no Sertão de Crateús, a mais de 300 km da capital.
“Continuo votando lá porque tenho vínculos afetivos e familiares. Também tem o fato de que, percentualmente, meu voto faz mais diferença lá do que aqui, o que me motiva mais a escolher os candidatos de lá”, reconhece.
O clima da campanha política no interior se soma ao que torna a viagem para votar uma experiência da qual não abre mão.
O local de votação e o dia, em si, são bem movimentados, pois as políticas no interior têm uma movimentação diferente, principalmente lá, que é pequeno. Os candidatos são quase todos pessoas conhecidas. Além disso, é praticamente certo o encontro com muitos conhecidos no dia da eleição também.
O “ar mais pessoal”, porque “quase todo mundo se conhece e os eventos, como carreatas e comícios, são praticamente uma festa para o povo lá”, fortalece na taboense a sensação de dever cívico de definir o futuro da cidade.
“O meu desejo de mudança positiva para a cidade é o principal motivo de não transferir meu título”, finaliza.
Mais eleitores do que moradores
A manutenção do vínculo com as cidades natais é um dos motivos que explicam o fato de alguns municípios cearenses terem mais eleitores do que população residente. É o caso de 18 localidades do Ceará, de acordo com dados do Tribunal Regional Eleitoral (TRE) e do Censo 2022 do IBGE.
Em General Sampaio, no Vale do Curu, há 1.854 eleitores a mais do que residentes: são 8.588 títulos cadastrados na cidade com 6.734 habitantes. Em São Luís do Curu, na Região Metropolitana de Fortaleza, a diferença é de 1.787 pessoas.
Confira a lista:
- Fortim – 11 eleitores a mais do que residentes
- Paramoti – 13
- Tururu – 23
- Moraújo – 70
- São João Do Jaguaribe – 210
- Altaneira – 327
- Pacujá – 442
- Barroquinha – 518
- Palhano – 666
- Ocara – 843
- Ibicuitinga – 1.022
- Aratuba – 1.077
- Guaramiranga – 1.131
- Caridade – 1.136
- Ibaretama – 1.571
- Granjeiro – 1.573
- São Luís do Curu – 1.787
- General Sampaio – 1.854