“É como se você tivesse uma venda nos olhos. Você não vê nada.” É assim que a empregada doméstica Maria Felícia de Sousa, de 69 anos, se sente ao se deparar com o encadeado de letras e palavras que não consegue entender. Filha de pais também analfabetos e natural de Crateús — cidade próxima ao Piauí, a 359,1 km de Fortaleza —, ela precisou se dedicar ao trabalho na roça e por isso não frequentou a escola quando pequena. Na adolescência, a vergonha de não saber ler e escrever a afastou da sala de aula.
Quando veio para Fortaleza, com cerca de 20 anos, a rotina de trabalho até tarde da noite “em casa de família”, onde também morava, dificultou os estudos. Décadas mais tarde, ela chegou a se matricular em uma escola, à qual não se adaptou, e, recentemente, contou com o apoio de uma vizinha para aprender a ler.
“Eu ia nos domingos. Ela chegava me chamando na porta e eu ia para casa dela. Deixei de ir por muito cansaço, mas não perdi a vontade de aprender. Não sei muita coisa. Assino meu nome e, se me aperrear, ainda erro um pouco. Mas eu assino o meu nome e, graças a Deus, entro e saio em qualquer espaço, eu me comunico muito bem com as pessoas. A vida me ensinou isso”, conta.
Não saber ler e escrever já causou problemas e situações constrangedores, relata Maria Felícia. Mãe de nove filhos, ela resolveu dar a eles uma criação diferente da que recebeu e fala com orgulho da filha com Ensino Superior. “Ela fez faculdade e me chamou: ‘mãe, vamos para a minha formatura’. Me levou e eu fiquei muito feliz por ela.”
Em todo o Ceará, cerca de 14,1% da população de 15 anos ou mais é analfabeta — o que corresponde a pouco mais de 987 mil pessoas —, segundo dados do Censo Demográfico 2022 divulgados na última sexta-feira (17) pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Com isso, o Estado é o 5º pior do País em relação à proporção de pessoas não alfabetizadas, atrás de Alagoas, Piauí, Paraíba e Maranhão. A mesma posição foi ocupada no ranking nacional nos anos de 2010, 2000 e 1991.
A parcela de cearenses que não sabe ler e escrever, conforme o Instituto, é maior nas faixas etárias mais avançadas. Entre as pessoas de 15 a 19 anos, por exemplo, 1,9% da população é analfabeta, enquanto no grupo de 65 anos ou mais essa taxa é de 39,7%.
O IBGE aponta que a maior taxa entre os mais velhos é “um reflexo da dívida educacional brasileira, cuja tônica foi o atraso no investimento em educação, tanto para escolarização das crianças, quanto para a garantia de acesso a programas de alfabetização de jovens e adultos”.
ESPECIFICIDADES DE JOVENS E ADULTOS
Porém, o olhar de municípios — responsáveis pelo Ensino Fundamental — na alfabetização é mais voltado para crianças, segundo a professora doutora Maria José Barbosa, docente do departamento de Estudos Especializados da Faculdade de Educação (Faced) da Universidade Federal do Ceará (UFC) e coordenadora do Grupo de Estudos e Pesquisa em Alfabetização (GEPA).
“As turmas de alfabetização destinadas aos jovens e adultos são muito limitadas. Muitas vezes, não tem nem como o adulto se deslocar de um lugar para o outro por questão de trabalho, de localização, às vezes até por questão de violência mesmo. O que estados e municípios poderiam fazer, em primeiro lugar, é reconhecer o direito de todos à educação. ‘Todos’ quer dizer idosos, adultos, mulheres, indígenas, pessoas restritas de liberdade e pessoas em situação de rua”, defende.
Em um país continental, com diversidade de pessoas, a professora aponta que organizar políticas públicas que atendam às necessidades da população é um desafio.
Maria José destaca que a alfabetização não é um luxo, e sim um direito de cada pessoa. “A nossa sociedade deixa à margem qualquer cidadão que não saiba ler, que não saiba escrever, mas todos têm esse direito. Seja para rezar, para saber uma receita, para passar uma mensagem, para fazer uma fofoca, todos devem ter direito ao acesso à cultura escrita”, afirma.
Com isso, para a docente, o currículo deve atender a especificidades da população de jovens e adultos. Aulas durante o dia — e não apenas noturnas —, por exemplo, contemplam pessoas que trabalham como vigilantes ou mães que poderiam voltar a estudar enquanto o filho está na escola.
Além disso, a professora defende o incentivo à profissionalização na Educação de Jovens e Adultos (EJA), com currículo que dê oportunidade de ocupação rápida e geração de renda. “Pessoas marginalizadas por não terem o domínio da linguagem escrita vão exercer ocupações que vão exigir força física. Então, nós devemos oferecer outras oportunidades. Nós temos jovens que são analfabetos e querem muita coisa, eles têm o anseio, mas muitas vezes as escolas fecham a porta para eles”, diz.
OS INDICADORES DO CEARÁ
Em mais da metade das cidades cearenses, pelo menos uma em cada cinco pessoas de 15 anos ou mais é analfabeta. Segundo os dados do IBGE, há 118 municípios (64% do total de 184) com taxa de analfabetismo igual ou superior a 20%. Em apenas cinco cidades esse índice é menor que 10%: Fortaleza, Eusébio, Maracanaú, Caucaia e Pacatuba.
As maiores taxas estão em Quixelô (a 336,6 km da Capital, no Centro Sul) e Granja (a 332,3 km de Fortaleza, no Litoral Norte). Nelas, cerca de 29% da população nessa idade não sabe ler ou escrever.
Há municípios cearenses que se destacam, inclusive, nacionalmente. Isso porque o IBGE divide as cidades pelo tamanho da população e, entre todos os que têm de 50 mil a 100 mil habitantes, Granja tem o maior percentual de pessoas analfabetas. Icó (25,9%) e Boa Viagem (24,3%) também aparecem nessa lista.
Mas o ranking no Ceará muda quando se observa o percentual de pessoas analfabetas em cada sexo. Em relação à população masculina, Aiuaba (Sertão dos Inhamuns) ultrapassa Quixelô, com taxa de analfabetismo de 35,3% — aproximadamente um em cada três homens. Quanto às mulheres, o primeiro lugar é ocupado por Graça (Sertão de Sobral), com 25,4% da população feminina analfabeta.