A Procuradoria-Geral do Estado do Ceará (PGE-CE) suspendeu, por tempo indeterminado, o acordo com a empresária Iracema Correia São Tiago, de 78 anos, que afirma ter a propriedade de 80% da Vila de Jericoacoara. Desse total, ela reivindica cerca de 50 mil m² em terras desocupadas na região.
Em nota, divulgada nesta sexta-feira (1º), a PGE explicou que realizará uma série de diligências e ouvirá outros órgãos para aprofundar a análise do caso. A instituição também solicitou ao Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) que faça uma perícia cartorária no registro do imóvel para atestar sua dominialidade, com apoio do Instituto do Desenvolvimento Agrário do Ceará (Idace).
“O objetivo da Procuradoria é garantir a segurança jurídica com relação ao andamento e conclusão do acordo extrajudicial com a proprietária do imóvel. Diante disso, o processo está suspenso por tempo indeterminado até que sejam cumpridas todas as diligências e que todos os órgãos se manifestem sobre a matéria, não restando dúvidas quanto ao legítimo domínio”
A Superintendência do Patrimônio da União no Ceará (SPU), o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) e o Ministério Público Federal (MPF) também participarão desse processo.
EMPRESÁRIA REAFIRMA POSSE
Em contato com o Diário do Nordeste, a defesa de Iracema afirmou, por meio de assessoria de comunicação, que a empresária está “tranquila” quanto à decisão. A nota alega, ainda, que os órgãos que serão ouvidos já teriam se manifestado anteriormente de modo favorável ao direito de posse dela.
“[Iracema] Entende que tudo o que for feito para esclarecer os fatos ratificará seus direitos e dará mais segurança e transparência ao processo, independente do prazo para a finalização do acordo. Iracema salienta mais uma vez, que o acordo garante a manutenção de todos aqueles que já habitam e ocupam a Vila regularmente”, pondera a defesa da empresária.
COMUNIDADE REIVINDICA “TRANSPARÊNCIA”
O Conselho Comunitário de Jericoacoara divulgou que o despacho da Procuradoria do Patrimônio e Meio Ambiente (PROPAMA) – núcleo da PGE-CE – “levanta dúvidas sobre a autenticidade das matrículas de terra que serviram de base para a reivindicação de posse pela empresária”. A decisão teria sido selada após uma reunião entre a Procuradoria, os representantes da comunidade e o IDACE, em 14 de outubro.
Ainda segundo o grupo de moradores da Vila, o encontro debateu elementos jurídicos e técnicos sobre a matrícula na qual se fundamenta o acordo extrajudicial, que sugerem a alteração dos documentos desde 1983. A modificação teria resultado uma "inexplicável expansão das áreas reivindicadas", passando de 441,04 hectares para 924,49 hectares.
Presidente do Conselho Comunitário, Lucimar Marques afirma que o acordo foi feito de forma “silenciosa” e sem o conhecimento de órgãos e entidades interessadas no processo e das pessoas que vivem na região.
A líder comunitária alega também que a comunidade só teve conhecimento do acordo quando tentou regularizar, junto ao Idace, um terreno para ser utilizado como uma horta viva para os moradores da praia, mas o local está entre as áreas reivindicadas pela empresária.
“Os terrenos que a família alega serem desocupados são áreas verdes e de preservação protegidas de construção. Não vamos entregar nossas terras para alguém que nunca esteve aqui. Onde ela estava esses anos todos? Por que não apareceram durante a regularização fundiária realizada pelo Idace?”, questiona Lucimar.
MP RECOMENDOU SUSPENSÃO
Segundo a Procuradoria, o Ministério Público do Estado do Ceará (MPCE) será um dos outros órgãos a serem ouvidos acerca do tema. Na semana passada, a instituição já havia recomendado à PGE e ao Instituto do Desenvolvimento Agrário do Ceará (Idace) a suspensão do acordo envolvendo a vila turística.
O embargo havia sido proposto pela Promotoria de Justiça de Jijoca de Jericoacoara. Na recomendação, o MPCE alegou que o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) aponta, em processo judicial, existir dúvidas sobre a titularidade do local.
Em resposta à solicitação do Ministério Público, a PGE informou que o acordo já estava suspenso desde 16 de outubro. No entanto, nesta semana, a suspensão passou a ser de “tempo indeterminado”.
Sobre a última atualização do caso, o órgão afirmou, em nota, que ainda aguarda ser oficialmente notificado. "A partir do recebimento de toda a documentação requisitada, o MP analisará a existência de eventuais irregularidades, com o fim de tomar as medidas cabíveis", salienta.
ENTENDA O CASO
Iracema Correia São Tiago, 78, afirma ser dona de uma área equivalente a 80% da vila turística desde os anos 1990. O assunto é tratado em processo extrajudicial entre ela e a Procuradoria Geral do Estado (PGE).
O acordo para transferência das terras foi firmado em 2023, sem participação da comunidade, segundo o Conselho Comunitário de Jericoacoara, que é contra o acerto.
Segundo Iracema, que se manifesta por meio de advogados, o ex-esposo (José Maria de Morais Machado) adquiriu, em 1983, três terrenos em Jericoacoara, totalizando mais de 714 hectares de área – propriedade assegurada por escrituras públicas. Dentro desta área estão cerca de 80% da Vila de Jericoacoara.
Em 1995, a cearense se divorciou do marido, ficando com esse território na partilha de bens. Em paralelo, no mesmo ano, o Instituto do Desenvolvimento Agrário do Ceará (Idace) iniciou o processo de regularização fundiária em Jeri, cadastrando moradores e transferindo a eles o título de propriedade das terras onde moravam.
Para fazer isso, o Estado arrecadou 88 hectares da Vila de Jericoacoara. Isso significa que o poder público não encontrou documentos que atestassem que as terras já tinham dona – e, então, as tomou como propriedade para transferir oficialmente aos moradores.
Mas dos 88 ha arrecadados em 1995, 73 ha já pertenciam, com registro cartorial, a Iracema São Tiago. Anderson Parente, advogado da família, acredita que a falta de tecnologia, “com matrículas escritas à mão ou datilografadas”, e a mudança de localização dos cartórios da região à época podem ter impedido o Estado de encontrar os registros das terras.
Em nota enviada ao Diário do Nordeste, há duas semanas, a Procuradoria Geral do Estado (PGE) reconhecia a autenticidade das escrituras, pontuando que estava “tudo regularizado perante o INCRA (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária), conforme atesta o Certificado de Cadastro de Imóvel Rural”.
Dos 73 hectares pertencentes a Iracema, ela reivindicou ao Idace, inicialmente, a retomada de apenas 18 ha, que seriam a única área não ocupada por moradores, comércios ou terrenos de interesse público. O restante foi cedido pela empresária.
Contudo, Samuel Machado Guimarães, empresário do ramo agropecuário e sobrinho de Iracema, afirmou, em entrevista ao Diário do Nordeste, que o acordo inicial já foi modificado, de modo que, hoje, a família reivindica uma área “de no máximo 5 hectares”, o equivalente a 5 campos de futebol.
“Em cima dos 80% que falam que ela tem, ela está ficando com menos de 4%, que foi justamente o que o Estado e o Município dispuseram a ela. Para não mexer na vida coletiva, foi aberta mão dessas áreas. Foram feitos todos os tipos de concessões necessárias ao acordo, para não mexer em momento algum na rotina da Vila”, revelou na última semana.