Procuradoria aponta 'desvio de finalidade' de Bolsonaro em comissão sobre ditadura

Como base, os procuradores usam uma entrevista concedida por Bolsonaro em agosto, em que revela objetivo "incompatível com as finalidades específicas buscadas pela comissão, as quais, transcendem a divisão do mundo entre direita e esquerda"

Escrito por Folhapress ,
Legenda: A CNV concluiu que "das 243 vítimas de desaparecimento forçado durante a ditadura militar no Brasil, apenas 33 delas tiveram seus corpos identificados"
Foto: Antonio Cruz/ Agência Brasil

Em ação civil pública ajuizada em Porto Alegre (RS), o Ministério Público Federal acusou o presidente Jair Bolsonaro (PSL) de cometer "desvio de finalidade" ao destituir e nomear, no final de julho, quatro membros da comissão do governo federal responsável por reconhecer crimes do Estado e localizar corpos de militantes de esquerda desaparecidos durante a ditadura militar (1964-1985). O MPF afirma que o decreto da substituição teve "vícios insanáveis", como "motivação deficiente e inobservância do procedimento exigido para o ato".

Em 29 de julho, incomodado com a ação institucional da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) em defesa das prerrogativas profissionais do advogado de Adélio Bispo de Oliveira (um portador de transtorno mental que tentou matar o então candidato à Presidência em setembro do ano passado), Bolsonaro atacou o presidente da Ordem, Felipe Santa Cruz.

Ele disse que o pai de Felipe, Fernando, integrou "o grupo mais sanguinário e violento da guerrilha lá de Pernambuco" e afirmou que detinha informações sobre o paradeiro dele.

Fernando, militante da oposição à ditadura, em 1974 foi sequestrado por agentes da repressão e permanece desaparecido desde então.

De acordo com a Comissão Nacional da Verdade (CNV), ele morreu sob tortura dias depois de sua prisão. Não havia nenhuma acusação de que ele tivesse participado de qualquer ato terrorista.

Em reação à afirmação de Bolsonaro, no mesmo dia 29 a então presidente da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP), vinculada ao Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, a procuradora da República Eugênia Gonzaga, solicitou à Presidência que revelasse que informações o presidente detinha sobre o paradeiro de Fernando.

Um dia depois, Bolsonaro destituiu quatro dos sete membros da comissão, incluindo a procuradora da República. Entre os quatro nomeados estavam um deputado do PSL do Paraná, Filipe Barros, que elogiou o golpe militar de 1964, um coronel reformado do Exército, Weslei Antônio Maretti, que chamou de "exemplo" um dos principais acusados de torturas e assassinatos na ditadura, e outro filiado ao PSL, Marco Vinicius Pereira de Carvalho.

O Ministério Público Federal ajuizou a ação civil pública na 3ª Vara Federal de Porto Alegre nesta segunda-feira (30). Ele pede a anulação do decreto presidencial das nomeações, o que as tornaria também nulas, e a declaração de nulidade de todos os atos praticados pelos novos membros da comissão desde a posse.

Na petição, os procuradores mencionam uma entrevista concedida por Bolsonaro em 1º de agosto. Quando indagado sobre a razão pela qual decidiu trocar os membros da comissão, Bolsonaro respondeu:

O motivo é que mudou o presidente, agora é o Jair Bolsonaro, de direita. Quando eles botavam terrorista lá, ninguém falava nada. Agora mudou o presidente. Igual mudou a questão ambiental também

Os procuradores apontaram na ação civil que o processo administrativo para a troca dos membros da comissão estava parado desde maio e só voltou a andar no mesmo dia 29 de julho em que a então presidente da comissão cobrou, em entrevista ao jornal Folha de S.Paulo, explicações da Presidência sobre o paradeiro de Fernando Santa Cruz.

"Há inegável desvio de finalidade no decreto presidencial porque o objetivo revelado pelo Chefe do Poder Executivo, em entrevista concedida no último dia 1º de agosto, é incompatível com as finalidades específicas buscadas pela comissão, as quais, como se viu, transcendem a divisão do mundo entre direita e esquerda", diz a petição subscrita pelos procuradores Enrico Rodrigues de Freitas, Sergio Suiama e Ana Padilha de Oliveira, lotados no Rio de Janeiro e no Rio Grande do Sul.

"O trabalho desenvolvido pela comissão, desta forma, nada tem de ideológico, pois visa, antes de mais nada, atender a um mandamento constitucional, legal e ético, consistente na busca pelo paradeiro de desaparecidos em razão de atos cometidos pelo próprio Estado brasileiro durante o último regime de exceção", diz a ação civil pública.

Os procuradores atacam o argumento do Ministério da Mulher e que as nomeações são "um ato administrativo discricionário do chefe do Poder Executivo, segundo seus critérios de oportunidade e conveniência".

Segundo eles, a natureza do ato "não elimina nem exclui o controle jurisdicional da legalidade do ato". "Como é sabido, há desvio de finalidade ou de poder quando o agente afasta-se da finalidade que deveria atingir para alcançar resultado diverso, não amparado pela lei", diz a ação civil.

Os procuradores apontam que "inexiste nos autos do processo administrativo justificativa específica para a escolha dos nomes dos membros substitutos indicados" e a nomeação do deputado Filipe Barros "não é válida, pois a Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados, titular da vaga, não foi consultada pela Presidência da República" para que indicasse o nome.

Os procuradores pontuaram ainda que os currículos dos novos integrantes "não foram apresentados" e não constam do processo administrativo encaminhado ao Ministério Público Federal pelo Ministério da Mulher.

De acordo com os procuradores, a CNV concluiu que "das 243 vítimas de desaparecimento forçado durante a ditadura militar no Brasil, apenas 33 delas tiveram seus corpos identificados". Assim, os trabalhos da comissão devem continuar para localizar e indicar o que houve com os outros desaparecidos.

Os procuradores ressaltam que a comissão não foi criada apenas por iniciativa do Executivo, em lei desde 1995, mas também como atendimento a uma decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos, sediada na Costa Rica.

"O Estado brasileiro tem, com efeito, o dever de promover a busca por desaparecidos políticos e das pessoas que, por terem participado, ou por terem sido acusadas de participação, em atividades políticas, tenham falecido por causas não naturais ou cometido suicídio. Atualmente, o único órgão do Estado brasileiro cujas finalidades incluem esta difícil temática é a CEMDP [comissão]", dizem os procuradores.

Procurado pela reportagem, o Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos informou que "o pedido [de informações] deve ser direcionado para a Advocacia-Geral da União".

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