Auxílio emergencial: 52 candidatos com mais de R$ 500 mil em bens receberam benefício no Ceará

Do total, 14 postulantes com mais de R$ 1 milhão em posses declaradas estão na lista de beneficiados. Maioria alega não ter recebido ou desconhecer pedido

Escrito por Igor Cavalcante e Alessandra Castro ,
Legenda: Auxílio emergencial, cuja parcela é de R$ 600, foi concedida a políticos que disputam as eleições municipais do próximo dia 15 de novembro
Foto: Thiago Gadelha

Mesmo após a Controladoria-Geral da União (CGU) apontar, em julho, que mais de 13 mil cearenses com “sinais de riqueza” teriam recebido o auxílio emergencial indevidamente, situação semelhante continua sendo identificada no Estado, agora com candidatos compondo a lista de beneficiados. Dentre os 16,1 mil postulantes a algum cargo público no Ceará nestas eleições, 14 são declaradamente milionários e, ainda assim, receberam ao menos uma parcela do auxílio emergencial do Governo Federal durante o período entre abril e agosto deste ano, segundo a CGU. 

Na lista estão incluídos pretensos prefeitos, vice-prefeitos e vereadores. Levando em conta aqueles que têm pelo menos R$ 500 mil em bens, são 52 contemplados.

O levantamento foi feito pelo Núcleo de Dados do Sistema Verdes Mares (SVM), com base em informações disponíveis no Portal da Transparência da CGU e no Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Estão excluídos do grupo os nomes que constam no sistema como tendo devolvido o valor recebido ou que o montante está retido, de acordo com a Controladoria-Geral.

Entre os casos identificados pela reportagem, há postulantes com carros de luxo, casas de praia, lojas e até posto de combustíveis, conforme consta no TSE. Todavia, a CGU explica que o acúmulo de bens, obrigatoriamente, não torna a pessoa inapta a receber o auxílio emergencial, já que são levados em consideração outros critérios. O principal deles é a renda mensal.

Quem pode receber 

Conforme a Caixa Econômica Federal, podem receber o benefício brasileiros que estejam desempregados ou sejam microempreendedores, contribuinte individual da Previdência Social ou trabalhador informal. Um outro critério é pertencer a uma família cuja renda mensal por pessoa não ultrapasse meio salário mínimo (R$ 522,50), ou cuja renda familiar total seja de até três salários mínimos (R$ 3.135,00). 

Os requisitos, contudo, não tratam sobre os bens acumulados pelos beneficiados – apenas sobre a renda e empregabilidade. Portanto, o recebimento do auxílio pelos sete candidatos a prefeito, quatro a vice-prefeito e 41 a vereador, apesar de causar estranheza, não configura necessariamente crime, como explica o superintendente da CGU no Ceará, Giovanni Pacelli.

“No auxílio emergencial, o foco é realmente a renda. Essa questão de ter bens e, mesmo assim, pedir (o auxílio) foi uma fragilidade porque se procurou ter como critério a renda. Ter um bem e estar empregado é uma coisa, ter um bem e estar desempregado é outra, (porque sem renda) daqui a pouco você vai vender (o bem material)”, explica.

Além disso, ele ressalta que em casos onde há fortes indícios de fraude – quando o patrimônio declarado envolve fontes de receitas que deixaram de ser informadas no momento da requisição do auxílio – já estão sendo investigados pela CGU. Ele enfatiza que alguns desses beneficiários já tiveram bens bloqueados.

“No caso das pessoas com indícios de recebimento indevido, fizemos a notificação, lembrando que não é uma punição, mas o aviso da suspensão do benefício devido aos bens que a pessoa possui. Ela pode ir justificar e, se comprovada a legalidade, passa a receber novamente”, esclarece.

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Casos

Os candidatos a vereador de Fortaleza, Renner Lima (MDB), e a prefeito de Paracuru, Bitem (Psol), por exemplo, dizem que se enquadram nos critérios para receber o auxílio, apesar do alto valor patrimonial. 

Com R$ 1,08 milhão em bens declarados à Justiça Eleitoral, correspondentes a cinco residências, o emedebista recebeu R$ 2,4 mil do auxílio emergencial, em quatro parcelas. “Sou microempreendedor individual, tenho direito ao auxílio”, justificou. 

Já o psolista afirmou que é trabalhador informal e o R$ 1,2 milhão em bens é referente a uma herança. “Recebi ‘recente’ do meu pai, tão recente que nem declarei ainda (no Imposto de Renda), mas declarei (ao TSE) como precaução, porque futuramente vou receber”, disse. Ele conta que é agricultor e, como os negócios ficaram prejudicados durante a pandemia, foi em busca do auxílio e recebeu R$ 2,4 mil. 

Possíveis golpes 

No Ceará, dois candidatos se disseram vítima de golpes e negaram ter solicitado o auxílio. É o caso do postulante a vereador de Fortaleza, Naugusto Freire (PSDB), que é cabeleireiro e declarou R$ 3,6 milhões em bens. Beneficiado com R$ 1,8 mil do auxílio, disse que ignorou o montante.

“Não sei por que veio, não fui informado, não liguei, possivelmente foi devolvido”, disse. Contudo, no Portal da Transparência, ele consta na lista dos que receberam o valor pago pelo Governo.

Também concorrente ao cargo na Capital, Márcio Barros (PMB) disse ter R$ 1 milhão em posses. Mesmo assim, a CGU aponta que ele recebeu R$ 2,4 mil do auxílio. Ele rebate: “Não recebi, não estou sabendo e não solicitei”.

O caso é semelhante ao do candidato a vereador em Trairi, Valmir Pinto (PT). Com R$ 1,1 milhão em bens, ele aparece como beneficiado por R$ 1,2 mil do Governo Federal.
“Não recebi e não estava sabendo. Sou autônomo, nem sei qual o critério (para receber)”, informou. 

Candidato a vice-prefeito de Pereiro, Ernando Estevan (DEM) – que declara R$ 1 milhão em bens – disse que irá apurar a informação, mas garante não ter recebido o dinheiro. “Isso aí eu tenho que ver, não tenho nada a dizer. Só se alguém usou meu nome, mas não recebi e não solicitei”, disse. 

Recomendação

A CGU recomenda que esses candidatos procurem uma delegacia da Polícia Civil e denunciem os casos de possíveis golpes, para que a situação possa ser investigada.
“Se o CPF foi usado nessa situação, pode ser usado em outras situações, como compra de veículos, imóveis. Após registrar o BO (boletim de ocorrência), faça uma reclamação no ‘FalaBr’ ou no Ministério dos Direitos Humanos”, recomenda Pacelli.

Silêncio

Todos os 14 candidatos milionários citados na reportagem foram procurados por meio dos contatos informados no Requerimento de Registro de Candidatura (RRC), disponível na plataforma DivulgaCand, do TSE. 

Evangelista da Cerâmica (PSB), candidato a vereador em Canindé, não respondeu aos questionamentos sobre o recebimento dos recursos. Ouvido pela reportagem, Francisco Ivoneudo (PSL), candidato a vereador em Pindoretama, também não quis explicar os questionamentos. 

Ademar Mota (Psol), candidato a vereador em Juazeiro do Norte, também não quis se posicionar sobre o caso após ser procurado pela reportagem. Os outros postulantes milionários não atenderam às ligações. 

Governo Federal

Responsável por identificar os cidadãos que têm direito ao benefício, o Dataprev informou, em nota, que utiliza o cruzamento das informações autodeclaradas no portal e aplicativo da Caixa com os dados disponíveis, no momento da análise, nas bases oficiais. 

“A empresa segue as regras de processamento definidas pelo Ministério da Cidadania – órgão gestor do benefício – que também homologa os resultados alcançados, indica as bases e estabelece as situações passíveis de serem contestadas”, informa. 

O órgão ressalta ainda que quem solicita o auxílio têm o dever legal de informar corretamente sua composição familiar, sob pena de incursão no crime de falsidade ideológica e multa, conforme previsto no Código Penal brasileiro. 

“É importante destacar que não havia previsão legal para verificação do patrimônio dos requerentes”, aponta. “Devido às dificuldades do processamento de milhões de requerimentos em blocos, foram criadas formas de rever o resultado da análise”, conclui. 

Auxílio emergencial

Criado em 2 de abril de 2020 pela Lei 13.982/2020, o auxílio emergencial é uma medida excepcional adotada em meio à pandemia da Covid-19 como resposta ao período de emergência de saúde pública.

Não podem receber

Os critérios excludentes para receber o auxílio emergencial são: emprego formal ativo, pertencer à família com renda superior a três salários mínimos (R$ 3,1 mil) ou cuja renda mensal por pessoa seja maior que meio salário mínimo (R$ 522,5). Também não têm direito aqueles que estão recebendo seguro-desemprego ou outros benefícios sociais, com exceção do Bolsa Família.

94 candidatos a prefeito milionários

O Ceará tem, na eleição deste ano, pelo menos 94 candidatos a prefeito milionários. É o que revela a declaração de patrimônio apresentada à Justiça Eleitoral pelos postulantes cearenses. As fortunas variam, e em um dos casos ultrapassa a marca de R$ 75 milhões. Entre os bens, estão: imóveis, terrenos, veículos e investimentos financeiros. 

Dos 184 municípios do Estado, 67 terão concorrentes com mais de R$ 1 milhão em bens. As fortunas foram informadas pelos próprios candidatos à Justiça Eleitoral. Limoeiro do Norte concentra a maior quantidade de postulantes milionários. Dentre as opções para os eleitores, há quatro pessoas nesse patamar financeiro: Zé Maria (PSB), que declarou ter R$ 2,05 milhões; Ítalo Diógenes (MDB), que tem 1,7 milhão; Mazé Maia (PSD), com R$ 1,4 milhão; e Roberto Holanda (Rede), com R$ 2,5 milhões. 

Para efeito de comparação, cada limoeirense tem, em média, R$ 15,5 mil em bens, de acordo com os dados mais recentes do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), de 2017. 

Para o doutor em Sociologia Clésio Arruda, o poder econômico sempre influenciou a participação na política brasileira. “Nos tempos mais remotos, a participação na política era garantida pelas posses ou rendas. Com o novo regime, passou a ser quem era alfabetizado. Isso também era limitador, porque só era alfabetizado quem tinha posses”, disse. 

De acordo com Arruda, com a Nova República, após 1988, as restrições econômicas passaram por uma nova maquiagem. “O fator econômico veio de outra maneira, agora através das campanhas política multimilionárias”, apontou.

Apesar de Limoeiro concentrar o maior número de candidatos milionários, os montantes dos concorrentes da cidade são até pequenos quando comparados aos candidatos mais ricos do Ceará. Encabeça a lista o atual prefeito de Cruz – que busca reeleição. Jonas Muniz (PSDB) apresentou uma fortuna de R$ 75,8 milhões. O valor é três vezes maior que o apresentado por João Barroso (PSDB), de Itapipoca, com R$ 25,8 milhões, o segundo candidato mais rico do Estado. No ranking dos ricaços, aparece ainda Oscar Rodrigues (MDB), candidato a prefeito de Sobral, com cerca de R$ 15 milhões em bens. 

Em Fortaleza, Heitor Férrer (SD) concentra quase metade de todo o patrimônio declarado pelos 11 candidatos. O montante total é de R$ 8,4 milhões . Sozinho, Férrer concentra R$ 4,2 milhões em bens. Além dele, na lista de milionários na disputa pelo Palácio do Bispo estão Sarto Nogueira (PDT), com R$ 1,5 milhão, e Capitão Wagner, com R$ 1,2 milhão. Aurora, Juazeiro do Norte e Pindoretama também têm três concorrentes milionários em cada.