A tutela: escolas e os conselhos
Nada evidencia melhor a terceirização política do que o Conselho Tutelar carregando problemas que muitos evitam, um herói forçado no palco da irresponsabilidade estatal. Parafraseando Ambrose Bierce, a responsabilidade tornou-se um fardo descartável e leve o bastante para ser arremessado aos ombros, mais convenientemente, do povo. O refúgio político da vez é a Lei nº 15.231, sancionada em outubro de 2025, que obriga escolas a notificarem casos de violência e vulnerabilidade de alunos aos conselhos tutelares. No entanto, a lógica por trás da norma revela mais um episódio da já consolidada “terceirização moral” do poder público: transfere-se a execução sem garantir condições mínimas de efetividade.
A politicagem, ao delegar sem estruturar, transforma o dever em retórica e o amparo em burocracia. O resultado é uma rede de proteção fragilizada, onde o Conselho Tutelar atua como último reduto de uma engrenagem que não funciona. Exagero? Segundo a Agência Brasil, o país conta com cerca de 6.100 conselhos tutelares em 5.570 municípios. À primeira vista, a cobertura parece suficiente, até que se observa a dimensão da responsabilidade imposta. De acordo com o Censo Escolar de 2024, são 47,1 milhões de estudantes em 179,3 mil escolas. A equação é óbvia e cruel: estrutura mínima diante de uma demanda gigantesca.
Além disso, os números que justificam a lei são irrefutáveis. Entre 2013 e 2023, o Brasil registrou aumento de cerca de 250% nos casos de violência escolar, somando 13,1 mil vítimas em 2023, segundo o Ministério dos Direitos Humanos e a Fapesp. No mesmo período, os registros de violência autoprovocada, automutilações, ideação e tentativas de suicídio, cresceram 95 vezes.
Diante de dados tão alarmantes, a lei parece inquestionável. No entanto, o perigo está justamente na aparência de solução. Sob o pretexto da prevenção, a escola que deveria acolher passa a monitorar; e o Conselho Tutelar, que deveria proteger, é empurrado ao papel de executor de uma política que observa mais do que ampara. No fim, o discurso de cuidado pode facilmente se converter em manual de “descontrole”, eficiente apenas em manter as aparências.
Davi Marreiro é consultor pedagógico