Visitas guiadas ao cemitério contam a história de Fortaleza

Próximas edições do projeto 'Fortaleza Necrópole' serão em outubro, com visitas noturnas ao Cemitério São João Batista e histórias de lendas urbanas

Escrito por
Ana Beatriz Caldas beatriz.caldas@svm.com.br
Um grupo de pessoas acompanha os professores Sandoval Matoso e Thiago Roque em visita ao Cemitério São João Batista
Legenda: Aulas abertas atraem públicos de todas as idades
Foto: Thiago Gadelha

Um projeto de aulas sensoriais e interativas adentra o Cemitério São João Batista para relembrar personalidades importantes do Estado e destacar a importância de personagens invisibilizados que também formaram o Ceará.

Compreender a história de uma cidade passa também por buscá-la em lugares menos atrativos, indo além dos museus, praças e bibliotecas. Foi com essa premissa que uma dupla de historiadores criou o Fortaleza Necrópole.

Idealizado pelos professores Sandoval Matoso e Thiago Roque, o projeto acontece há um ano e já realizou nove aulas. O Verso acompanhou a edição mais recente, que aconteceu em uma manhã de sábado e durou cerca de três horas, e registrou os principais momentos da incursão.

O passeio começa no Centro de Turismo do Ceará (Emcetur), onde um grupo de pouco mais de 50 pessoas se reúne para iniciar a caminhada. Ali, Matoso e Roque dão início à aula destacando a memória da Capital a partir do Centro, que dividia a cidade dos “vivos” (onde o comércio começava a se desenvolver e moravam as famílias com maior poder aquisitivo) e a cidade dos “mortos” (onde estavam localizados o cemitério, o presídio e as moradias de famílias pobres). 

Grupo em parada na Praça da Estação, que foi cemitério antes da criação do São João Batista
Legenda: Grupo em parada na Praça da Estação, que foi cemitério antes da criação do São João Batista
Foto: Thiago Gadelha

Espaços hoje turísticos, como a própria Emcetur, ilustram essa divisão: ali foi a primeira cadeia pública do Ceará. Já a Praça da Estação, que também faz parte do tour e hoje conecta Estação das Artes, Pinacoteca e Museu Ferroviário, outrora foi o cemitério São Casimiro.

Nessa primeira fase da caminhada, em meio às árvores centenárias da Emcetur, aspectos como as contribuições dos povos originários para a história do Ceará, a vinda de retirantes para a Capital em busca de melhores condições e um resgate histórico do desenvolvimento da ciência e da forma de lidar com a morte são explicados ao público. 

Aula interativa começa na Emcetur e vai até o São João Batista
Legenda: Aula interativa começa na Emcetur e vai até o São João Batista
Foto: Thiago Gadelha

Antes de sair do centro de turismo, os visitantes recebem castanhas e uma dose de licor de jenipapo, que era utilizado por indígenas cearenses para proteção dos maus espíritos, em “um brinde aos vivos e aos mortos”.

Segundo os professores, essa e outras intervenções têm como intuito conscientizar sobre a importância de se falar sobre a finitude da vida, além de relembrar costumes de povos que foram excluídos da história "oficial" do Ceará.

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Do ‘Caminho das Almas’ até a ‘Aldeota’ do São João Batista

Trajeto a pé segue pela rua Castro e Silva
Legenda: Trajeto a pé segue pela rua Castro e Silva
Foto: Thiago Gadelha

Iniciada a caminhada, a aula interativa passa pela Praça da Estação e segue pela rua Castro e Silva, que ficou conhecida como “Rua das Flores” ou “Caminho das Almas”, já que era por ali que o cortejo fúnebre seguia até o Cemitério São João Batista após os funerais na Igreja da Sé. O trajeto dura pouco mais de 1 km.

Ao chegar ao cemitério, a orientação primária é que, caso algum cortejo chegue ao campo santo, todos devem ficar em silêncio e interromper fotos e vídeos, em respeito à memória de quem se foi e à família enlutada.

Nos primeiros minutos, os visitantes podem contemplar as principais sepulturas do primeiro plano, onde estão enterradas entes queridos de famílias mais abastadas e personalidades cearenses, a exemplo de políticos como Tomás Pompeu de Sousa Brasil, o Senador Pompeu, Virgílio Távora, Boticário Ferreira e Caio Prado. “É a Aldeota do cemitério”, brinca o professor Sandoval Matoso.

Túmulo de Virgílio Távora, no primeiro plano do cemitério
Legenda: Túmulo de Virgílio Távora, no primeiro plano do cemitério
Foto: Thiago Gadelha

Os túmulos e mausoléus suntuosos que ocupam a maior parte do primeiro plano e parte do segundo plano do cemitério ilustram como a relação com o morrer se transformou no último século.

Antigamente, lembra Sandoval, a maneira como alguém era enterrado dizia muito sobre quem era a pessoa em vida; por isso, famílias ricas faziam questão de trazer verdadeiras obras de arte, enormes e caras, geralmente de Portugal, para sepultar seus entes queridos.

Sepulturas mais suntuosas ficam na entrada do cemitério
Legenda: Sepulturas mais suntuosas ficam na entrada do cemitério
Foto: Thiago Gadelha

Por sua importância arquitetônica, esses túmulos são destaques da chamada arte tumular ou arte cemiterial, que por décadas reproduziu os movimentos artísticos em sepulturas. No São João Batista, a predominância é de obras que remontam aos estilos Neoclássico e Neogótico. Há, ainda, túmulos inspirados no Barroco e na Art Noveau.

Sepulturas de heróis cearenses e menina ‘milagreira’ são destaques do percurso

Túmulo de Dragão do Mar foi localizado em 2020 e restaurado
Legenda: Túmulo de Dragão do Mar foi localizado em 2020 e restaurado
Foto: Thiago Gadelha

Conforme adentra-se o campo santo, os túmulos se tornam menos luxuosos, mas sem perder a relevância histórica. É no segundo plano que estão, por exemplo, as sepulturas de dois grandes heróis cearenses: Francisco José Nascimento, o Dragão do Mar, e Tito de Alencar Lima, o Frei Tito.

No caso da sepultura de Francisco, a lápide é uma descoberta recente. Por anos, não se sabia onde Chico da Matilde havia sido enterrado, e só em julho de 2020 o historiador Licinio Nunes de Miranda descobriu que ele estava no túmulo da família de sua esposa, Ernesta Brígido. 

Seguindo a caminhada, outro dos túmulos mais visitados é apresentado ao grupo: o de Frei Tito, militante que foi preso político na ditadura, torturado e exilado do Brasil em 1970 por lutar contra a repressão dos militares. A tortura, além de sequelas físicas, deixou sequelas psicólogicas, que perduraram até sua morte, em 1974.

Os dois momentos têm a missão de relembrar os grandes nomes que lutaram pelo Ceará e pelo País, além de ressaltar a importância de seguir na luta pela justiça social, pela democracia e contra o racismo nos dias de hoje.

Túmulo da menina Lúcia é um dos mais visitados, especialmente no Dia das Crianças
Legenda: Túmulo da menina Lúcia é um dos mais visitados, especialmente no Dia das Crianças
Foto: Thiago Gadelha

Sepulturas de personagens menos conhecidas do grande público também são parte importante da exploração no São João Batista. Duas delas integram a parte final da aula aberta: a da menina Lúcia, criança morta aos 2 anos que ganhou fama de milagreira e cujo túmulo recebe brinquedos, doces e agradecimentos a graças alcançadas durante todo o ano; e da jovem Arina Castello Branco, cujo túmulo reproduz suas últimas falas em vida:

“Mamãe, você cria a minha filhinha?” / “P. Lumesi, que horas eu morro?” / “Querido, não chores…”

“As três frases dela, em sua agonia, revelam quem era ela e quem deveria ser a mulher [naquela época]”, explica Sandoval, durante a visita. “No auge da dor e do sofrimento, no auge do parto, ela falece. E a preocupação dela não é com ela: é com a filha, com o marido e com sua mãe. Ou seja, aqui temos o papel do que seria a mulher naquela época”, comenta o professor. 

Por que visitar um cemitério?

Passeio percorre os dois primeiros planos do campo santo
Legenda: Passeio percorre os dois primeiros planos do campo santo
Foto: Thiago Gadelha

Entre lembranças dolorosas de partidas precoces e violentas, homenagens a heróis e demonstrações da desigualdade social que sempre fez parte da história de Fortaleza, andar pelo labirinto de milhares de túmulos – não se sabe precisar quantos – é encarar o passado e entender que ainda ele reverbera. Para Sandoval, é também uma oportunidade de encarar a vida de outro modo.

O professor conta que, assim como a maior parte das pessoas, tinha uma relação “meio traumática” com a morte, e decidiu aprofundar-se no tema após a pandemia, quando ela ficou muito próxima de todos. Foi assim que decidiu, em 2023, que ocupar a cidade também incluía olhar para sua necrópole, assim como fazem cidades como São Paulo, Buenos Aires e Paris, que têm tours conhecidos em seus cemitérios mais antigos.

“O legal quando a gente faz essas ações é que as pessoas aparecem. Então, existe uma demanda em Fortaleza, existe um desejo, só que muitas vezes a gente não sabe, não tem como se encontrar, ou não sabe onde é que tá, entendeu? Falta oportunidade”, afirma. 

A visita é recomendada para pessoas a partir de 18 anos, mas pode incluir ainda crianças e adolescentes, se acompanhados dos pais.

Túmulos registram história cearense

Jocélio, Ana Clara e Ana Rita Ximenes participaram da aula em família
Legenda: Jocélio, Ana Clara e Ana Rita Ximenes participaram da aula em família
Foto: Ana Beatriz Caldas

Na última edição do Fortaleza Necrópole, o público inscrito reunia pessoas de diferentes idades e perfis, geralmente em pequenos grupos de amigos, famílias ou casais. Uma das mais jovens do grupo, a estudante Ana Clara Ximenes Freitas, 17, trajava roupas que remetem ao estilo gótico durante o passeio que fez com os pais.

O interesse pela subcultura foi a ponte para que ela aprendesse a gostar de visitar cemitérios, conta. Desta vez, no entanto, o convite partiu da mãe, a supervisora financeira Ana Rita Ximenes, 42, que já havia participado do tour e quis levar a família.

“Viemos para aprender um pouco sobre a história, porque é bom conhecer a história de nossa cidade e do país também”, destacou a adolescente, que irá prestar vestibular neste ano e acredita que esse tipo de atividade também pode ajudar nos estudos.  

Para Ana Clara, os destaques da aula foram a visita ao túmulo de Frei Tito, que relacionou ao que já havia aprendido nas aulas de história da escola, e as estátuas do estilo neogótico, construídas em maioria no século 19 e na metade do século 20.

A mãe da jovem, Ana Rita, destacou que o momento foi “de muita riqueza e de troca de muita informação”. “Eu acho um grande tesouro você descobrir a sua Fortaleza, a cidade que você mora. E muita coisa que o professor fala remete à própria vida da gente”, comentou.

Visitar o cemitério com esse olhar, completou, relembra “a importância de você valorizar o passado daquele lugar, a história do povo”. “É uma coisa que eu veria mais vezes, porque cada vez você encontra uma frase que você não viu na outra [visita]. A cada momento é uma nova leitura. Nunca é o mesmo momento, nunca é o mesmo passeio, é sempre um outro passeio”, afirmou.

Arte tumular impressiona, mas sepulturas ainda necessitam de cuidados

Túmulos são mantidos pelas famílias
Legenda: Túmulos são de responsabilidade das famílias
Foto: Thiago Gadelha

A visita ao São João Batista também alerta para questões mais delicadas, como a conservação dos túmulos e, consequentemente, de parte da história da Cidade. Administrado pela Santa Casa desde 1860, o cemitério tem esculturas suntuosas, mas também lápides destruídas, semiabertas ou corroídas pelo tempo. 

Essa disparidade acontece, segundo os professores do Fortaleza Necrópole, porque os túmulos são de responsabilidade das famílias, ou seja, não há uma obrigação governamental de mantê-los.

A servidora pública Fabiana Santos, 48, que participou da última visita, destacou a importância do campo santo para preservar a história do Ceará, mas também a ausência de cuidado em relação a cemitérios famosos do mundo que se transformaram em pontos turísticos.

“Vejo no cemitério a possibilidade de ver a história verbalizada: quem foram aquelas famílias, quem nomeia as ruas. Foi uma forma de vivenciar essa história e conhecer as nossas raízes”, comentou.

Sepultura da família do Barão e da Baronesa de Aratanha tem parte de sua estrutura corroída
Legenda: Sepultura da família do Barão e da Baronesa de Aratanha tem parte de sua estrutura corroída
Foto: Thiago Gadelha

“Os túmulos são lindos, belíssimos, trazem muita história. Mas também vi que deveriam ser mais conservados, isso é um ponto. Faço referência a uma experiência que eu já tive, porque já fui visitar o [Cemitério da] Recoleta, na Argentina. Não ter isso na nossa cidade, tendo toda aquela riqueza, me chamou muito a atenção”, completou.

O Verso procurou a Secretaria Municipal da Cultura de Fortaleza (Secultfor) para entender se existe uma salvaguarda do Cemitério São João Batista. Em nota, a pasta afirmou que o campo santo é “reconhecido como um dos mais importantes patrimônios históricos e guardião de significativa parte da memória e identidade de Fortaleza” e possui tombamento provisório no âmbito municipal.

“A Secultfor reforça que a instrução de tombamento definitivo foi elaborada, analisada e aprovada pelo Conselho Municipal de Proteção ao Patrimônio Histórico-Cultural (Comphic) em janeiro de 2023. O processo está em tramitação para sua conclusão”, afirma o comunicado.

Edições especiais de Halloween

Após um ano em atividade, o Fortaleza Necrópole coloca em prática um sonho antigo no mês de outubro, em alusão ao Halloween: fazer visitas noturnas ao São João Batista, com foco não só nos principais personagens históricos que ali descansam, mas também em histórias assombradas, a exemplo das lendas da Mulher-serpente, da Bailarina do Maguary e das crianças que desaparecem.

Intitulada “Assombros & Memórias”, a nova fase do projeto será realizada em parceria com o contador de histórias Samuel Jacinto e olhará para as lendas urbanas a partir de um método histórico, segundo Sandoval Matoso. Para garantir a segurança dos presentes, o espaço será fechado exclusivamente para as atividades e contará com logística especial.

“A gente vai trazer as lendas do imaginário popular, mas também vai trazer a questão da história mesmo, da disputa dos espaços, das personalidades – só que obviamente trazendo um pouco mais das alegorias e dessa ideia das lendas urbanas”, explica Sandoval Matoso.

“É algo bacana, que obviamente mexe com essa ideia do fantasioso, mas também traz para o mundo real. E sempre é para celebrar a vida. Sempre com esse intuito”, conclui.

Serviço
Fortaleza Necrópole
Quando: Próximas edições nos dias 03/10 (vagas esgotadas) e 10/10 (inscrições abertas)
Horário: A partir das 19h30
Onde: Cemitério São João Batista (rua Padre Mororó, s/n - Centro)
Valores: R$ 85 por pessoa
Mais informações: (85) 99412-1487 e @fortalezanecropole

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