Orgulho esculpido em pano

Mulheres quilombolas reafirmam a identidade na produção de bonecas pretas e tapetes coloridos

Escrito por Melquíades Júnior - Repórter ,

É desafiadora a afirmação de identidade na comunidade quilombola de Alto Alegre. Tão perto de Fortaleza (está no município de Horizonte, Região Metropolitana) que a pressão urbana quase desfaz tudo que é valor local, sagrado ou não, naquela comunidade rural. Começa de criança um problema que não é só de lá, quando as meninas querem ter, senão ser, a 'Barbie'.

>Vidas feitas à mão

>Acolhida simples e original

>Respeito à terra onde vivem

>Preservação da cultura

A quase unanimidade de bonecas loiras, altas, magras e de olhos azuis nas prateleiras das lojas brasileiras contrasta com o fenótipo predominante no Brasil, ou no Ceará - ou, ainda, no território quilombola onde fabricar bonecas pretas é estimular o autoconhecimento.

Negritude

Braços curtos ou longos, cabelos cinzas, lilás, caramelados ou pretos. O vestido colorido com bicos bordados, a saia rodada de chita e até sapatos de pano contornando os pés também de pano. Os lábios são grossos, "carnudos" não como os da atriz Angelina Jolie (ela que tem os lábios das mulheres negras). Empacotadas em fileira na estante de braços abertos como quem espera. Todas pretas.

Quando não pretas, em marrom, o que irá dizer o mesmo. "E tem gente preta assim no Ceará?", ouviu uma vez Francisca Aldeniza, respondendo com um "claro que tem". Só olhar ao redor. Se é preciso ver dentro para enxergar fora, as bonecas são, primeiramente, instrumento para algo tão sério que é o brincar.

Isso porque a meninada local aceita e gosta das bonecas, mas encontra resistência em adultos. "Teve mãe de dizer 'filha, uma boneca preta feia dessa?", relembra Aldeniza que hoje diz ligar menos. As artesãs de Alto Alegre já não se importam de incluir o sobrenome "bonequeira", se é para identificá-las na rua. É assim com Marlenilce, Marta, Maria, Ioneide e a própria Aldeniza.

Fazer bonecas de pano tornou-se uma atividade econômica, além de sociocultural. Há oito anos, a atividade é desenvolvida de forma artesanal e sistemática entre as quilombolas. Tudo começou com apoios públicos e privados. Uma oficina de bonecas de pano chegou à comunidade em 2008 e alimentou o sonho de 25 mulheres.

Apoio para continuar

"Hoje, somos somente cinco que permanecem desde o início, mas é porque antes muitas pensavam que era começar a fazer boneca e já ter salário no fim do mês. Os apoios foram diminuindo, mas a gente sabe que essa é uma atividade que com mais apoio dá muito certo, por isso continuamos", afirma a artesã. Outra delas, Liduína da Silva, começou nas oficinas de bonecas, mas apaixonou-se mesmo pelos tapetes, com valor médio de R$ 12,00. "Sou agricultora, apicultora e tapeteira", define.

Ao custo médio de R$ 15,00, as bonecas são vendidas no Centro Cultural da vila e em outros espaços públicos como a feira popular de Horizonte a cada 15 dias e no projeto Tear Comunitário, que em Fortaleza e Região Metropolitana cataloga artesanato e faz a venda ambulante. Outro estímulo comercial se dá com o programa Energia Social, da Coelce. Os apoios fazem com que os "de fora" sejam maiores compradores da produção local.

Nas manhãs, as cinco mulheres bonequeiras estão na sede da Associação dos Remanescentes de Quilombo de Alto Alegre e Adjacências (Arqua), onde durante o ano são desenvolvidos diversos projetos em música, artes plásticas, agricultura e turismo sobre a comunidade com mais de 200 famílias. Enquanto costuram o brinquedo, brincam com as palavras, riem a todo instante, numa ciranda lúdica e, sendo sustentável, econômica.