Gestantes infectadas podem transmitir doença para os bebês

O barbeiro deixa de ser o transmissor quando um sangue infectado contamina outro. No Brasil, mais de 500 crianças nascem com o parasito todos os anos. A doença negligenciada ameaça marcar no berço a vida de quem já nasceu pobre

Escrito por Melquíades Júnior , melquiades.junior@diariodonordeste.com.br
Legenda: Taciana, hoje com 20 anos, e a filha Ticiane, 4, moram em Quixeré, no Vale do Jaguaribe. A criança não sofreu transmissão vertical (pela mãe), mas a região ainda endêmica é um risco permanente
Foto: FOTO: MELQUÍADES JÚNIOR

O que mais preocupa na doença de Chagas, há mais de um século de sua descoberta, não é só quantos diagnosticados, mas quando. Quem tem 70 anos pode ter sido infectado na infância. Longe, portanto, do período da transmissão vetorial (a partir do inseto barbeiro). Mas Taciana Varela tem uma vida do tempo relativo, quando sair do padrão é transformar o presente em tardio ou precoce. Porque com apenas 16 anos faz duas descobertas quase tão simultâneas quanto extremas: está grávida e infectada com o parasito. Para além do que está dentro dela, há mais uma revelação: o foco transmissor não está no passado. E isso não é tudo.

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No Laboratório de Pesquisa em Doença de Chagas, em Fortaleza, há um padrão próximo nos pacientes da "doença de pobre": mulher, acima dos 50 anos, residente na zona rural, pouco ou nem um ano de estudo, vivendo com até um salário mínimo. Quando chegam casos de jovens, ou pior, crianças (raro), as farmacêuticas acendem a luz amarela.

Taciana é uma menina gestando outra.

"Se surge um caso que não é de infecção de décadas, e sim de alguns anos atrás, isso preocupa muito a gente. O diagnóstico de pessoas em tão pouca idade só mostra que o problema ainda está ali, que as medidas não foram tomadas pelos gestores municipais. O vetor de transmissão ainda pode estar pairando", explica Fátima Oliveira, coordenadora do Laboratório de Pesquisa em Doença de Chagas, da Universidade Federal do Ceará (UFC). Recebeu o caso de Taciana pela Secretaria Municipal de Saúde de Quixeré, que chegou do interior com status de prioridade.

O tempo da saúde no atendimento público é, via de regra, tão lento e burocrático que a atenção dada às gestantes, do pré-natal a outras demandas, parece especial.

O hemograma completo de Taciana, solicitado na primeira consulta como gestante, chega em poucos dias e acusa a presença do Trypanosoma cruzi, causador de Chagas.

Sílvia Rocha, médica da Unidade Básica de Saúde (UBS), queria lhe falar:

- Você mora em casa de barro, de taipa?

- Não, por quê?

- Nunca morou?

- Não...

- Porque seu exame aqui deu positivo de Chagas. A sorologia deu reagente.

Desde que soube ser duas em uma, Taciana tratou de cuidar do que "não fazer" sendo uma grávida. E o que fazer sendo três?

Após o susto de que seria mãe, e dos julgamentos ao redor ("a menina de Francisca tá grávida", disseram em tom de fofoca), dedicou-se com o que viria dentro, como só as mães. Isso incluía não se preocupar. Por isso, a palavra 'positivo' nunca pareceu tão negativa quanto nesse momento de grandes transformações.

Viajou no ar, fez vibrar o tímpano, ossos, nadar na cóclea até chegar às células receptoras de som e se transformar em sinais elétricos rumo ao cérebro pelo nervo auditivo. O córtex cerebral ativou glândulas hormonais. Em muito menos tempo que estas linhas biológicas demais, Taciana estava com os olhos banhados em lágrimas e uma sensação de não-lugar. A viagem maior que a do som foi a do medo da perda. Porque o protozoário viajou para dentro de si antes mesmo do zigoto.

- Não, tenha calma. Não precisa se desesperar. A gente tem que saber se tá com muito tempo, se foi uma picada recente. Vamos fazer o encaminhamento pra você tratar logo, pois está gestante. É muito raro passar pra criança pelo cordão umbilical.

- O quê? Então eu posso passar pra ela?

Se 'talvez' é haver chance do sim, é motivo de mais desespero. Taciana, 16, é uma mãe preocupada. A hipótese apontada pela médica, ainda que rara, é real.

Raro, porém...

Apesar de não serem elevadas ao status de prioridade (portanto, evidência) as pesquisas acadêmicas, de recursos financeiros cada vez mais escassos, são um alento para o alerta. Foi realizado um inquérito sorológico nacional entre os anos de 2001 e 2008 com 105 mil crianças de 0 a 5 anos de todos os estados, exceto Rio de Janeiro. A prevalência estimada foi de 0,03%, com 32 crianças infectadas. Dessas, 20 (0,02%) apresentavam positividade materna concomitante, sugerindo a transmissão congênita. A pesquisa, reunindo universidades de Goiás, São Paulo e Distrito Federal, foi publicada pela Sociedade Brasileira de Medicina Tropical (SBMT).

No Brasil de 210 milhões de habitantes, nasce, em média, 500 novos bebês infectados.

Deverão pontuar, no futuro, as estatísticas de idosos chagásicos, pois é possível viver longamente.

A própria garotinha Berenice, diagnosticada aos dois anos pelo médico sanitarista Carlos Chagas - propiciou, então, a descoberta da doença, em 1909, viveu até os 73 anos de idade, tendo outra causa de morte.

Mas nem sempre os exemplos convencem do contrário, como se a morte dos que não sobreviveram falasse mais alto. Na comunidade de Cercado do Meio, em Quixeré, há uma área endêmica. Outros apontamentos são os diversos focos: próximo à casa de Taciana tem galinheiros e chiqueiros cercados com talos de carnaúba. Ela nunca morou em casa de taipa, mas viveu e vive próximo a diversos focos do inseto. A menina, sem saber, já estava cercada do "bicudo".

Grávida, não poderia tomar o medicamento benzonidazol. Nem quando estivesse amamentando.

Ticiane, a filha, recebeu um ano de aleitamento e cessou o choro após três dias "pedindo peito". A mãe devia se cuidar.

- Nossa, Taciana, você é forte. Não sentiu quase nada.

As palavras de Alanna da Costa, do laboratório de Farmácia, estão guardadas até hoje. Fez tudo 'direitinho'.

A criança não foi infectada. A mãe, quatro anos após o 'positivo', leva uma vida normal. "É como se eu nem tivesse, acredita?".

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