Como um Campus da UFC em Fortaleza serviu de base na II Guerra Mundial há mais de 80 anos

Estrutura impulsionou a fluxo de aviões e teve impacto no comportamento da cidade, permanecendo no imaginário popular

Escrito por Lucas Falconery , lucas.falconery@svm.com.br
Legenda: Balão dirigível era usado para monitorar navios na orla de Fortaleza
Foto: National Archives Catalog/Reprodução

A tensão internacional por causa da II Guerra Mundial (1939-1945) deixou uma marca histórica em Fortaleza: o Campus do Pici, da Universidade Federal do Ceará (UFC), foi usado como base aérea militar dos Estados Unidos (EUA). Há 80 anos, inclusive, pousava na capital cearense o primeiro dirigível americano para patrulha.

Isso porque com o conflito mundial, o governo americano se posicionou como fornecedor de armamentos e aviões para a Inglaterra e China, por exemplo. Para o material chegar até a Europa, no entanto, era necessário fazer pausas para abastecimento, dentre outros motivos.

O Brasil foi tido, então, como região estratégica para esse transporte e foram criadas bases militares do Amapá à Bahia, incluindo Fortaleza. O governo brasileiro cedeu os espaços em troca da estrutura para a criação de aeroportos pelo País.

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O balão dirigível K-84 chegou ao território cearense após sair de Lakehurst, um distrito de Nova Jersey, nos EUA, na viagem mais longa já feita até então por uma embarcação usada na época, percorrendo mais de 6 mil km. Mas qual era a intenção?

Os registros do National Archives Catalog (Catálogo Nacional de Arquivos, numa tradução livre), consultados pelo Diário do Nordeste, mostram o dirigível sendo usado para uma patrulha anti-submarino a 20 milhas (cerca de 32 km) da orla de Fortaleza.

“O objetivo principal era fazer um patrulhamento no litoral para investigar alemães e ajudar a proteger os comboios de navios mercantes, que navegavam agrupados com mais de 20 navios, tentando localizar alguma ameaça”, detalha o arquiteto José Henrique de Almeida Braga.

Legenda: Balão era usado pelo governo americano para inspeção no mar
Foto: National Archives Catalog/Reprodução

José Henrique realizou pesquisas sobre o assunto para a escrita do livro “Salto Sobre o Lago”, publicado em 2017, com detalhes sobre a repercussão da II Guerra Mundial em Fortaleza.

“O Pici foi a área escolhida porque, no final dos anos de 1930, haviam estudos indicando que aquela área era adequada para ter um aeroporto, então foi comprada uma parte do sítio do pai da Rachel de Queiroz”, detalha o pesquisador.

Nesta parte da história mora, aliás, uma certa confusão sobre a origem do nome “Pici”. Existe, no imaginário popular, a ideia de que o espaço é chamado assim por causa do título de “Post of Command” (Posto de Comando), ou PC, pronunciado “pi-ci”, no inglês.

Mas os historiadores apontam que, na verdade, o nome surgiu de um sítio criado no lugar, por volta de 1870, chamado Sítio do Pici.

"O nome já existia e uma das interpretações é que o dono do sítio gostava muito dos personagens do José de Alencar, Peri e Ceci, do 'O Guarani', e a ideia é que seja a junção", explica o professor de História Sandoval Matoso.

No início da II Guerra, e com o espaço definido, começou a construção da pista de pouso e instalações militares. “Em 1941, começou a construção com o objetivo de receber esses aviões e voos de transferência para entregar mercadorias em outros lugares. Fortaleza entrou no circuito da guerra assim”, resume José Henrique.

Isso fez com que cenas inusitadas, numa Fortaleza provinciana, fossem registradas. Imagine naquela época, um balão dirigível – chamados de blimps – cair no meio da Bezerra de Menezes…

“No começo de 1945, teve um acidente com o dirigível que caiu lá no final da Bezerra de Menezes, perto da Escola de Agronomia, quando começou a perder o gás. Ninguém ficou ferido e, em pouco tempo, eles desmancharam a estrutura para que não fosse espionada”, acrescenta.

Impacto no comportamento em Fortaleza

Há 80 anos o Ceará era chefiado pelo interventor Francisco Menezes Pimentel, que seguia ordens do presidente Getúlio Vargas. Para a população, o assunto carregava um certo mistério.

As informações eram veiculadas por rádio ou em periódicos impressos já que não existia nem televisão. A influência americana também chegava pelo cinema, pois naquele período Fortaleza recebia várias salas de filmes estrangeiros.

“As notícias eram muito truncadas porque havia uma forte censura na época, as autoridades tinham medo dos espiões, as notícias eram mais sobre o que os americanos faziam, mas nada de operações militares”, acrescenta o pesquisador.

Legenda: Criação da base teve impacto até no comportamento da cidade
Foto: National Archives Catalog/Reprodução

Em 1942 houve um torpedeamento de navios brasileiros e estrangeiros em Sergipe e na Bahia, o que causou uma revolta popular em Fortaleza onde aconteceu uma movimentação conhecida como "quebra-quebra".

As pessoas se reuniram na Praça do Ferreira e atingiram estabelecimentos comerciais e moradias de estrangeiros vindos de países envolvidos na Guerra. A Casa Veneza, a Pernambucana e o jardim japonês da Família Fujita foram alvo. O Diário do Nordeste já publicou uma reportagem sobre o assunto.

O episódio foi uma mostra da tensão local. "Fortaleza passa a receber alguns impactos na vida da população que passou a sofrer muito, tinha que apagar luzes e racionamento de energia e alimentos. Um medo cada vez mais forte de um ataque da cidade", detalha Sandoval.

"A cidade de Fortaleza tem uma associação muito forte com a II Guerra Mundial, seja porque os jovens da faculdade de Direto elegiram um monumento para celebrar a vitória do Brasil, na Praça da Bandeira, ou porque carregamos em bairros e ruas nomes que homenageiam à participação na Guerra, como o Montese
Sandoval Matoso
Professor de História

Mas os fortalezenses também acompanhavam amenidades, como os militares indo jogar basquete no Praia Clube ou na participação deles em festas locais. Além disso, artistas e diretores de filmes vieram para a cidade para manter a boa relação com o País. “Em 1944, passou por aqui a atriz americana Ilona Massey, que atuou em Balalaika, e fez uma apresentação aqui”, exemplifica o pesquisador.

Legenda: Divulgação do filme e presença da atriz em Fortaleza
Foto: Acervo Nirez/Reprodução

Também houve um impacto sobre o comportamento da cidade e atual prédio do Estoril, na Praia de Iracema, abrigou o United States Organization (USO) para a diversão dos soldados. “Isso provocou um grande rebuliço com os loiros dos olhos claros, aquela coisa que às vezes fascina, e tinham as moças que namoravam só os americanos”, completa José Henrique.

Até então, Fortaleza vivia sob forte influência da França com os cafés e estilo de vida da Belle Époque que foi substituído pelo "American Way of Life".

Fim da base no Pici

Com o aumento do fluxo de aviões, os governos decidiram criar uma base maior chamada de Base Aérea de Cocorote, relacionado à rota do Rio Cocó – atual Aeroporto Internacional Pinto Martins. Logo após o fim do conflito, em 1945, a estrutura do Pici deixou de ser utilizada.

“Depois que acabou a Guerra, a base foi abandonada e o aeroporto de Fortaleza passou a ser no Cocorote e o Pici foi abandonado. A área foi dividida entre o Dnocs (Departamento Nacional de Obras Contra as Secas) e a Universidade”, frisa José Henrique.

No momento, apenas algumas estruturas de concreto ainda aparecem como resquício do período no Campus do Pici. A pista de decolagem foi totalmente ocupada por moradias.

Foi um grande acontecimento porque não existia nada igual em Fortaleza, existia apenas a base aérea de Fortaleza, mas não se comparava em tamanho e estrutura. Eles trouxeram um novo paradigma de instalação aérea para o Ceará
José Henrique de Almeida Braga
Arquiteto

Algumas famílias ainda hoje habitam em espaços que foram edificados, por exemplo, para o armazenamento de armas. "Acabaram utilizando as construções que não tinham a finalidade bélica, mas para enfrentar outras guerras: as urbanas", destaca Sandoval.

 

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