O que uma vítima de violência espera do Poder Público após um episódio traumático? Quem e onde há preparo para acolher àqueles que sobreviveram a um ataque ou até mesmo os familiares que vivem o luto e buscam por Justiça?

De hoje até quinta-feira, o Diário do Nordeste publica a série 'Acolhidos'.

Da violência institucional ao feminicídio. É sabido que “nem toda dor é gritante, mas toda dor merece ser ouvida”, como dito no movimento ‘Mãos que Protegem’ encabeçado pelo Ministério Público do Ceará (MPCE) por meio do Núcleo de Acolhimento às Vítimas de Violência (NUAVV).

Criado em 2019, o Núcleo tem o propósito principal de acolher. Em seis anos, mais de 12 mil vítimas foram atendidas, garantindo que o órgão tem função além de ‘responsabilizar’.

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Não existem dados que ‘resuma’ a dor de quem fica.

Com atendimento que inclui assistência à saúde, jurídica, psicológica, social, de segurança e, quando necessário, encaminhamento para inserção em programas de proteção a testemunhas e vítimas de crimes, a procuradora de Justiça e coordenadora do Núcleo, Joseana França, destaca que o Núcleo foi pensado para “não ser só mais um equipamento”.

“Eu participo do Nuavv desde a criação e o nosso objetivo é acolher para garantir o atendimento integral à vítima. Uma das coisas que a gente mais busca é garantir a efetividade do nosso atendimento. Que não seja mais uma porta que a vítima bata e ela fique se sentindo que é ‘só um encaminhamento’”, diz Joseana.

Acolhimento às vítimas de violência

AMPARO E PROTEÇÃO

Em meio a um episódio violento, no qual as vítimas tendem a precisar estar em ambientes historicamente considerados ‘hostis’, chegar à sede do Núcleo é ter a chance de acreditar que ali há uma ‘mão amiga’. 

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Legenda: O NUAVV foi criado em 2019
Foto: Emanoela Campelo de Melo

Nas paredes, desenhos e frases de afirmação, como: “você é valioso” e “nós acreditamos em você”. Atrás das portas, equipe multiespecializada e ambientes pensados para acolher até mesmo as crianças.

A procuradora reconhece que “muita coisa mudou desde 2019”. Aprendizado, profissionalismo e qualificação.

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Legenda: Joseana tomou posse como procuradora em cerimônia realizada no início de 2025, com participação do procurador-geral Haley de Carvalho Filho
Foto: Reprodução/MPCE

“Para acolher, para cuidar de pessoas vítimas de violência não basta só boa vontade. É preciso se preparar.  Hoje a gente pode dizer que somos referência no acolhimento de vítimas da violência. Tenho muito orgulho e sei que ainda existem muitos desafios”, disse Joseana.

Mellyne Nascimento, psicóloga do NUAVV há cinco anos, acrescenta que o termo ‘acolher’ é para a vítima “entender que quando está no MP entendemos que a responsabilização é algo necessário, mas é além disso. É compreender o sofrimento, os traumas e as sequelas a partir daquela violência”. 

“A gente escuta quais as demandas dessa vítima e a partir das demandas que a vítima traz atuamos como ponte. É um acompanhamento durante todo o processo”
Mellyne Nascimento, psicóloga

Acolhimento às vítimas de violência

“FOI O ‘ALGUÉM’ QUE PEGOU NA NOSSA MÃO”

Em janeiro de 2024, Cristiane Lameu e Silva foi morta a facadas pelo esposo. O educador físico Antônio Márcio Ribeiro Parente e Silva foi preso em flagrante pelo crime, chegou a alegar insanidade mental, mas terminou condenado no ano passado.

O crime estarrecedor aconteceu na frente do filho do casal. Um menino de 11 anos, que gritava por socorro quando a Polícia Militar do Ceará (PMCE) chegou à residência da família instantes após o homicídio.

Marília Souza Lameu, sobrinha da vítima de feminicídio, recorda que ela e outros parentes ficaram “sem norte, sem saber o que fazer no primeiro momento, quando precisamos conciliar resolver a burocracia e a dor de perder a Cris”.

Marília diz que foi nesse momento que conheceu o Núcleo de Atendimento às Vítimas de Violência: “eles foram o ‘alguém’ que pegou na nossa mão pra gente poder pensar nos próximos passos”.

Familiares e amigos de Cristiane Lameu fizeram campanha nas redes sociais para pedir por justiça
Legenda: Familiares e amigos de Cristiane Lameu fizeram campanha nas redes sociais para pedir por justiça
Foto: Davi Rocha

Ela, os pais de Cris, o cunhado e até mesmo o filho da vítima e do réu receberam atendimento desde o dia do ocorrido. 

“O trabalho do Nuavv é incrível, foi fundamental, um amparo. Desde o dia do fato recebemos atendimento da psicóloga. Nos acompanharam nas audiências,no júri. O acolhimento foi de suma importância. Fez toda a diferença”
Marília Lameu
Sobrinha da vítima

“Pra gente que fica, que fica com a dor, que fica com o luto, é como um abrigo”, segundo Marília.

Quem também se deparou com o Núcleo “no pior momento da vida” foi Ilana Maria Bezerra da Silva. Mãe do estudante Paulo Vitor Oliveira, morto aos 16 anos por um policial militar.

Paulo Vitor tinha saído de casa minutos antes de ser alvejado. Foi na mercearia na esquina de casa a pedido da mãe, para comprar pasta de dente.

O crime aconteceu em julho de 2022. Desde o dia seguinte o caso foi acompanhado pelo Diário do Nordeste, até o desfecho processual, em março de 2025, com a condenação do PM Ricardo Lucas Goes Jucá.

Joseana França pontua que as famílias vítimas da violência institucional tendem a não saber em quem confiar quando é um agente da Segurança Pública que mata e destaca que no Núcleo existe um fluxo específico para cada demanda.

Ilana conheceu o Nuavv indicada por ‘dona Edna’, uma das mães que encabeça o movimento ‘Mães do Curió’, e hoje diz “graças a Deus que o Ministério Público e a Defensoria Pública existem”.

“Eu cheguei lá no Nuavv e fui recebida pela doutora Joseana. Me recebeu muito bem. Recebi atendimento de psicólogo. Hoje eu sou acompanhada no Cras”.

O medo de sair na rua, de ser abordada pela Polícia ainda acompanha ‘dona Ilana’, que segue em outra luta: “estamos agora com o processo de indenização contra o Estado pela morte do meu filho”.

*Nesta quarta-feira o Diário do Nordeste segue com a publicação da série de reportagens ‘Acolhidos’.

Acolhimento às vítimas de violência