Memória das águas

Escrito por Redação ,
O sertão virou mar diversas vezes. Com tantas águas, o Jaguaribe se agigantava e expulsava das ribeiras

Fortaleza / Itaiçaba. "Atenção, atenção, povo jaguaribano! O Governo do Estado determina o afastamento imediato de todos os moradores imediatos das cidades de Aracati, Itaiçaba, Jaguaruana, Jaguaribara, Russas, São João do Jaguaribe, Limoeiro do Norte, Jaguaribe, Castanhão e Icó. Com o rompimento da barragem do Orós, todas as pessoas residentes nessas localidades estão com a sua vida em grande perigo, pois serão levadas pelas águas! Procurem os pontos altos, as serras, os morros imediatamente! Abandonem suas casas! Fuja logo, senão você morre! É ordem das autoridades!".

Resgate em canoas no Centro de Iguatu durante as cheias de abril de 1989 Fotos: Arquivo Diário

Não existem águas de março mais na memória de um povo ribeirinho brasileiro do que a de quando a barragem do Orós arrombou e lançou sobre a população sertaneja um ronco hídrico apocalíptico.

Dentre as várias enchentes do Rio Jaguaribe, intercalando os longos períodos de seca, a de 1960 foi a única que não precisou de chuvas torrenciais. Do céu, o que mais vinha eram panfletos com o texto anunciado acima, jogados de um avião que fazia sobrevoos rasantes nas cidades jaguaribanas para anunciar o pior.

O arrombamento do Orós foi uma evidente surpresa, mas não diferiu muito das tragédias de outros anos de enchentes, em que o cenário é de pessoas tentando fugir das águas e recuperar bens pessoais em canoas, comunidades ilhadas e as pessoas refugiando-se nos telhados. É o que acontece até hoje em anos de cheias, porque mesmo com a construção de açudes para garantir uma recarga d´água que não se agigante sobre o rio, o aumento da densidade populacional nas últimas décadas, pela própria ocupação desordenada da beira do Jaguaribe, faz de qualquer enchente do rio uma tragédia para qual as cidades nunca se prepararam em séculos de ocupação das margens.

Para o mais alto que der

Francisco Fidelis Menezes, seu "Chiquinho da Banda", de Itaiçaba, não tem lembrança da enchente de 1924 porque foi o ano em que nasceu. Mas de 1934 em diante, lembra das vezes em que precisou ser carregado pelos pais ou carregar os filhos "para o mais alto que desse".

Comunidades são retiradas da beira-rio em Aracati nas cheias de 1989. De cima da ponte JK moradores assistem à fúria das águas

Até pouco tempo, havia uma série de marcas de até onde a água chegou nas colunas da Igreja Matriz de Nossa Senhora da Boa Viagem - o prédio está em reformas, incluindo pintura externa. Mas sem ver, Fidelis lembra de todas. E foram muitas, porque a 30 km dali é onde o "grande rio" se despeja no mar.

Abraçada também pelos afluentes do Jaguaribe, Itaiçaba, como Jaguaruana, tem suas zonas urbanas quase inteiramente dentro d´água durante as cheias.

Desde a expansão urbana iniciada no século XVIII, tem-se feito o registro de cheias no Jaguaribe, a partir de 1729, de acordo com os documentos existentes da época.

Em 1789, a cheia foi tão grande que "um córrego bastante largo e profundo foi aberto". Era a comunidade do Córrego de Areia, em Limoeiro do Norte, conforme registros do século XIX. A cheia de 1875 gerou apelos, por meio da Câmara Municipal de Russas, às autoridades provinciais:

"A Câmara desta municipalidade tem a honra de levar ao conhecimento o estado de penúria a que se acha reduzida a população em consequência da inundação. Este inverno tem sido para nós um verdadeiro dilúvio. As águas crescem de um modo espantoso". Quem sempre quis água, reza para que ela pare de chegar, numa admissão de que o sertanejo é melhor habituado com a falta de água do que o excesso dela.

Seca d´água

O dilúvio das águas do Jaguaribe ecoou nos versos do poeta Patativa do Assaré e ganhou o País numa adaptação coletiva cantada por vários artistas, dentre os quais Alcione, Gilberto Gil, Amelinha, Ednardo, Elza Soares, Erasmo Carlos, Luiz Gonzaga, Belchior e Chico Buarque:

Moradores de São João do Jaguaribe são retirados das proximidades do rio e levados para abrigos em partes mais altas da cidade

"É triste para o Nordeste o que a natureza fez / Mandou cinco anos de seca e uma chuva em cada mês / E agora em 85 mandou tudo de uma vez / A sorte do nordestino é mesmo de fazer dó/ Seca sem chuva é ruim / Mas Seca d´água é pior / Ceará martirizado, eu tenho pena de ti / Limoeiro, Itaiçaba, Quixeré e Aracati".


MELQUÍADES JÚNIOR
REPÓRTER